quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ondjaki: análise do romance «Bom Dia Camaradas»


À CONVERSA COM ONDJAKI:
ENTREVISTA EXCLUSIVA RICARDO PINTO:


À CONVERSA COM ONDJAKI:
ENTREVISTA EXCLUSIVA RICARDO PINTO:
Nadlu de Almeida nasceu em Novembro de 1977 em Angola, na belíssima cidade de Luanda.
Durante a sua infância começam a surgir fortes indícios de que aquela criança viria a tornar-se um nome incontornável da literatura contemporânea. Começou por utilizar as sebentas da escola para elaborar os seus primeiros textos…
Com 13, 14 anos começa a aventurar-se no mundo da leitura, começando com nomes ímpares da literatura como Satre, García Márquez e Graciliano Ramos.
Anos mais tarde assume uma faceta de escritor que faria engrandecer a cultura africana de expressão portuguesa.
Viria a assinar as suas obras com o pseudónimo Ondjaki. Palavra em umbundu, Ondjaki significa literalmente «aquele que enfrenta desafios» . O escritor confessa que era para se ter chamado Ondjaki, mas à última hora os seus pais decidiram mudar-lhe o nome. Quando conheceu a escrever assume, ter achado bem pegar nesse nome que outrora lhe estivera destinado.
Poeta e prosador, também escreve para cinema e co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (“Oxalá cresçam Pitangas – histórias de Luanda”, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos e da Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos.
Aos 32 anos de idade, vê reconhecido o seu trabalho pelos quatro cantos do mundo. Alguns dos seus livros foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco e chinês.
Ondjaki caracteriza-se de facto pela sua versatilidade. Do conto, ao romance, à novela, à poesia, à literatura infantil, vem ainda acrescer o seu gosto pelo cinema, teatro e pintura. Questionado sobre toda esta envolvência nos diferentes tipos de arte, o escritor afirma gostar “de estar com os poros abertos e sofrer pressões de todas as artes, e de vários mundos, individuais e colectivos.”
Actualmente encontra-se a viver no Brasil, Rio de Janeiro, sendo que viaja constantemente pelo mundo, de destacar por exemplo a sua viagem a Cuba em Fevereiro passado.
Apesar de ainda muito jovem, o escritor angolano já soma no seu percurso importantes prémios que abaixo se destacam:
PRÉMIOS

-"Actu Sanguíneu" (poesia) Menção Honrosa no prémio António Jacinto (Angola, 2000)
-"E se amanhã o medo" (contos), Prémio Sagrada Esperança (Angola, 2004)
-"E se amanhã o medo" (contos), Prémio António Paulouro (Portugal, 2005)
-Finalista do prémio “Portugal TELECOM” (Brasil, 2007), “Bom dia Camaradas”.
-"Os da minha rua" (contos), Grande Prémio APE (Portugal, 2007)
-Finalista do prémio “Portugal TELECOM” (Brasil, 2008), “Os da minha rua”.
-Grinzane for Africa Prize - Young Writer (Italia/2008)

Nota: O romance utilizado para o presente trabalho foi:
• Ondjaki (2007); Bom Dia Camaradas; Editorial Caminho; 2.ª edição;

Metodologia do trabalho:

No âmbito da disciplina de Culturas Africanas Comparadas o presente trabalho tem como base fundamental uma análise à obra de Ondjaki, fundamentada na análise do seu primeiro romance, Bom Dia Camaradas (2001).
Nesse sentido o presente trabalho orientou-se em duas fases:
• Numa primeira fase foi lido e analisado o romance do escritor angolano, Bom Dia Camaradas, de 2001. Neste patamar do trabalho pretendeu-se analisar a forma de escrita, o seu estilo, linguagem, organização e mensagem transmitida;
• Numa segunda fase e porque nada melhor, do que o próprio escritor ser a nossa fonte de informação foi realizada uma entrevista via e-mail com o escritor em estudo.
Relativamente à escolha do romance para análise: confesso que até ao início deste ano lectivo desconhecia o escritor Ondjaki. Quando me começaram a falar nele havia aspectos que se frisavam e, que de facto me suscitaram curiosidade. Entretanto intercalou-se o Natal e chegou até mim esse mesmo romance. Numa primeira instância li o livro numa só noite. Era de facto uma estória envolvente, que dava vontade de continuar a ler e verificar o que se seguiria na intriga.
Para este trabalho de análise li novamente o livro de uma forma mais atenta, distante e tentei captar a essência do mesmo.
Portanto, uma vez que há aspectos da análise que se interligam com a entrevista concedida, não será feita uma análise estanque a cada fase, mas sim de uma forma complementar.

Objectivos a alcançar:

• Analisar o romance Bom Dia Camaradas de Ondjaki:
• Discutir a questão da infância;
• Verificar até que ponto se trata de um romance autobiográfico;
• Apontar algumas das tradições patentes na infância do narrador;
• Confrontar o autor do romance com a clarividência da predominância do cheiro na obra;
• Tentar compreender a dinâmica das personagens apresentadas;
• Compreender de que forma os mujimbos invadem a realidade angolana;
• Caracterizar o momento relativo ao tempo da estória (anos 80);
• Analisar o fenómeno de descolonização e o impacto na sociedade;
• Vivenciar a integração dos cubanos na sociedade angolana;
• Estabelecer as relações afectuosas do narrador;
• Discutir a questão da oralidade africana no romance;
• Caracterizar a linguagem e estilo patentes na obra;
• Conversar com o autor sobre outros aspectos relacionados com a sua vida.


1) A infância é um elemento muito produtivo na sua literatura. Noto que o seu olhar nessa mesma infância é um olhar do presente sobre o seu passado. O porquê de todo esse fascínio pelo mundo infantil, mais concretamente, a sua infância?
Qualquer tentativa de explicar esse fascínio pela infância, está condenada a uma solução especulativa, quase abstracta... Talvez, como diria Manoel de Barros, eu só saiba falar disso, ficcionalmente. Depois teria que acrescentar que “não é bem assim”, no meu caso. Sei e gosto de falar de outras coisas, mas há um lado ficcional, que trata de uma infância de certo modo “autobiográfico”, que me faz escrever com ternura e com prazer. O que não acontece sempre. A verdade é que escrever sobre universos que tocam a minha infância muitas vezes se configura como uma “urgência estética”, e escrever sob esse estado de encantamento, é uma experiência muito agradável, do ponto de vista humano...

De facto a própria contra-capa do romance diz-nos que a «Infância é um antigamente que sempre volta» . Este livro retrata isso mesmo, a infância de um menino nos anos 80, o narrador, que se designa de Nadlu. Relativamente ao facto de a personagem ter o mesmo nome do registo civil do autor da obra fez com que eu, o questiona-se:
2) Podemos classificar este romance como autobiográfico, na medida em que o próprio narrador se chama Ndalu?
Quer me parecer que sim, mas não se deve chegar a essa conclusão pelo nome do personagem...
É evidente que pelo levantamento de diferentes situações que nos vão sendo narradas ao longo do romance, assim como a confirmação do autor em como o nome de todas as personagens do romance Bom dia Camaradas são “verdadeiras” recria bastante a sua própria infância.






Figura 1- “Teria 5 ou 6 anos. A árvore é um abacateiro.”
O abacateiro apresentado na figura 1 encontra-se referenciado no romance na página 116: “Dali não via o abacateiro, mas podia ouvir as folhas dele, sentir o cheiro forte, ouvir um abacate cair.”
Infância do narrador - núcleo de personagens envolventes:

Outras referências são citadas na obra que nos remente para a infância do narrador:
• “ Eu ia ficar atrapalhado se no meio da correria os óculos caíssem (…) “
“ (…) só não podia correr muito tempo porque eu também sofria de asma.” In página 71;
• Pai trabalhava no ministério: “- O camarada João era motorista do ministério. Como o meu pai trabalhava no ministério ele ajudava nas voltas da casa.”: In página 15;
• “- Bom dia, camarada António…” In página 21
• “ No final da tarde a camarada directora veio falar connosco (…)”In página 18
• “ As minhas irmãs chegavam da escola, o meu pai também chegava.” In página 25 ´
• “Eu e ela tínhamos aulas à tarde, ela porque era professora e eu porque era aluno” In página 27
A mãe era professora, dava aulas à primária, desde a 1ª à 4ª classe; por vezes, era chamada a dar aulas de português ao 5º e 6º ano).
• “Como dizia a professora Sara, parece que vocês não sabem que a vossa missão é estudar (… )”In páginas 28 e 29
• “Murtala, assustado, aqueles olhos de rato já bem acesos.” In página 29
• “Petra ia ter medo, mas sempre mais preocupada com as aulas, In página 30
• “ A Romina convidou alguns colegas e os camaradas para irem lanchar à casa dela (…) “In página 43
• Tia Dada: “ – Dona Eduarda, por favor, saia do carro…” In página 53
(A tia Eduarda, ou tia Dada, como era carinhosamente tratada nasceu e cresceu no Namibe, que antigamente se chamava Moçamedes; quando foi para Portugal viveu no Cacém) Ondjaki
Tradições patentes na infância do narrador:

• “Ele me deixou na escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha chegado de boleia. Nós costumamos gozar sempre quem chega de boleia (…)”: narrador, In página 16
• “Os professores escolhiam dois monitores por disciplina(…) e tinha que se saber tudo sobre a disciplina e não se podia tirar menos de 18. “ narrador, In página 18

3) Alguma vez foi monitor? E consegui tirar o 18?
Fui monitor da Física, na 7ª classe, e sim, tirei 18 algumas vezes.
• “(…) quando entrava alguém na sala de aula tínhamos que nos pôr de sentido e fazer aquela cantoriazinha, que uns e outros aproveitavam para berrar: bua taaardeeeee… camarádaaaaa… directoraaaaaaa. (…) atééééééééeé… manhãããããã… camarádaaaaaaa directoraaaaaaaa!” In páginas 18 e 19
• “Matabiachar cedo em Luanda, cuia!” In página 21
• “ (…) mas não conversámos muito, até porque na escola se um rapaz está toda hora a conversar com uma rapariga, assim já vão dizer que ele quer engatar, que tá a dar xaxo, ou então, que é pior, dizem que é um rapaz que só quer andar com meninas.” In página 80
• “ (…) a escola não tinha casas de banho, não sei pra que aquela conversa (…) “In página 81
• “ (…) toda a gente gostava de chegar de boleia no dia das provas (…) “In página 116
• “ (…) toda a gente desenhava coisas relacionadas com a guerra (…)”In página 128
• “ Desenhar armas era normal, toda a gente tinha pistolas em casa (…)” In página 128
• “ Guerra também aparecia sempre nas redacções (…)”In página 129

4) Ao longo do romance em análise, Bom Dia Camaradas, apercebemo-nos da facilidade com que reconstrói mundos, vivências e sobretudo cheiros com bastante pormenor. Podemos considerar que todo este processo se trata de uma espécie de nostalgia da infância e/ou uma maior facilidade de o presente encontrar o passado?
Não sei. Talvez o apelo aos universos ‘sensoriais’ seja um recurso para chegar a certos lugares da memória. Há sim, em mim, uma ‘boa nostalgia’ pela infância, sendo que é um mundo que, no presente e no futuro, tenho tendência para recordar como muito bom, tempo de felicidade, de encantamento pela simplicidade da vida, coisas que fui perdendo com a idade mais adulta, uma vez que “interpretar o mundo” acaba por complicar a visão que dele temos... De resto, é um recurso literário como qualquer outro, mais ou menos consciente, dependendo do momento da escrita.

Ao longo da obra em análise encontram-se bem patente o recurso aos elementos sensoriais, sobretudo do cheiro através das seguintes passagens:


Referências aos diferentes tipos de cheiro

• “Todos os dias ele tinha o mesmo cheiro, mesmo quando tomava banho, parecia ter sempre aqueles cheiros da cozinha.” In página 14 (referência ao Camarada António);
• “Há assim um fresquinho quase frio que dá vontade de beber leite com café e ficar à espera do cheiro da manhã.” In página 22
• “O cheiro da cozinha, o apito da panela, a movimentação do camarada António, tudo me diziam ser onze horas.” In página 23
• “Mas aquele quente-abafado misturado com o cheiro a peixe seco queria dizer, isso sim, que tinha chegado um voo nacional” In página 37 (episódio em que o narrador se dirige ao aeroporto para receber a tida “Dada” que chegava de Portugal.
• “Depois abriu a janela e parecia que estava a fazer como eu faço de manhã, a cheirar o ar”. In página 40 (Referência à tia “Dada”).
• “ Aquele cheirinho abriu-me o apetite, há quem não goste, mas eu acho que o peixe seco cheira muito bem, parece sumo concentrado do mar.” In página 41
• “ Senti o cheiro da comida vir da outra sala, era peixe grelhado de certeza absoluta.” In página 62
• “ Do meu lugar eu via a chávena à minha frente, o fumo que saía da chávena, sentia o cheiro do pão torrado, o cheiro da manteiga a derreter nele (…) “In página 77
• “ (…) na minha casa, com este jardim, noite tem cheiro (…) “In página 97
• “ (…) a noite traz outros cheiros para esta varanda (…) “In página 97
• “ (…) um cheiro quente que pode ser uma coisa, imaginem onde se ponha rosas muito encarnadas, (…) “In página 97
• “ (…) tudo cheirinho de sobremesas deliciosas (…) “In página 108
• “ (…) continuava no ar aquele cheiro de despedida.” In página 108
• “ (…) porque despedida tem cheiro, vocês não sabem, né?, (…) “In página 109 (Referência à despedida dos professores cubanos no final do ano lectivo)
• “ (A Romina olhou para mim, ela sentiu o cheiro nesse momento.) ” In página 109
• “ Antes de chegar perto sente-se logo o cheiro do tufo de chá de caxinde, (…) “In página 115
• “ Dali não via o abacateiro, mas podia ouvir as folhas dele, sentir o cheiro forte, ouvir um abacate cair.” In página 116
• “ (…) a parte de trás das salas, ali onde cheirava bué a chichi.” In página 140
• “ (…) a água é que trás todo aquele cheiro que a terra cheira depois de chover, (…)” In página 135
5) Já ouvi comentários, de que o Ondjaki é de facto o «escritor dos cheiros». Considera-se um jardineiro de cheiros e aromas?
Não, só me considero um mero contador de estórias. E ainda tenho muito que aprender... Trabalho com esses recursos, porque me fazem sentido, porque é o modo que a minha escrita conhece de transmitir algumas coisas que, descritivamente, nem sempre ficam bem.
• “Alguns colegas cheiravam muito a cantiga (…)”In página 28
• “Estava muito calor, e lembro-me de ter sentido uma vez mais aquele cheiro generalizado de cantiga”. In página 32
• “Fingi que estava a limpar o suor da testa com a manga da t-shirt e aproveitei para cheirar o meu sovaco. Podia estar pior…, pensei.” In página 34
• “ Ai o meu sovaco já tava mesmo a cheirar (…)” In página 39
• “ (…) as minhas irmãs já tinham chegado a casa e também estavam a cheirar a cantiga(…)”In página 40
• “ (…) especialmente o Bruno e o Cláudio que também tiveram de lavar os sovacos porque aquilo já era de mais.” In página 43
• “ Olhei para as árvores, os pássaros estavam lá sentadinhos, não se mexiam, também deviam estar a suar.” In página 60
• “ (…) mas eu, com o suor e a massa dos óculos (…)”In página 66
• “ (…) nem mingúem a correr (pra evitar a cantiga) “In página 80
• “ (…) porque ela já me tinha dito pra eu não andar a correr à toa que ficava suado e sujo(…)”In página 81

6) Luanda é sem dúvida uma cidade de muito calor. Esta repetição de «suor, sovaco», foi intencional no romance? Afinal por que motivo falar tantas vezes na dita «cantiga »?
É um recurso sensorial... que também funciona como recurso descritivo... mas eu não entendo nada disso...

Camarada António

7) No romance em análise assistimos à morte do Camarada António, que, pelo que dá a perceber, apesar de ser um criado lá de casa, não é um simples criado. Não obstante, a forma como nos dá a conhecer a morte dele é muito superficial, é como que haja um processo de suavização da morte do camarada. Como é a sua relação com a morte e sobretudo perder algum ente querido em duas vertentes, na realidade e no papel?
Primeiro, devo esclarecer, o camarada António não era um criado. Era um empregado. Uma pessoa que trabalhava na minha casa e cuja profissão ou ocupação, era ser cozinheiro. Desculpe o preciosismo, mas o termo “criado” acarreta conotações que nunca entraram pelas portas da minha casa, isto é, da casa dos meus pais. Segundo, afirmar que a forma como dou a conhecer, no livro, a morte do camarada António “é muito superficial”, é uma convicção sua. Tenho para mim que realmente o que se passou nessa parte do livro foi que eu quis imprimir no livro a “brevidade” (diferente de superficialidade...) da notícia, tal qual me havia acontecido na vida real. A notícia foi-me dada com alguma simplicidade e rapidez, para não dizer brusquidão, e assim aconteceu-me escrever no livro. E sem comentários, sem floreios literários ou reflexões sobre o assunto. Aliás, como sabe, a única reflexão que há ali é emocional, sensorial: o rapaz vai à cozinha e “finge” que pode falar com o camarada António, dirige-lhe a palavra, e aguarda respostas que não chegam. E depois chove. Chove no seu quintal e no quintal do camarada António. Por fim, a minha relação com a morte... É algo estranho, sempre foi... Não tenho muito a dizer sobre isso. Não tenho nada contra a morte, tenho é imensa dificuldade em entender a saudade que nos fica da pessoa, e a sentença, cruel, de não voltar a poder falar com alguém. É isso que me dói na morte.

Ao longo do romance são enumeras as referências ao Camarada António, sobretudo na parte inicial do mesmo. A figura desta personagem remete-nos para o colonialismo português em Angola e a opinião das pessoas no pós-colonial.


• “ – Menino, no tempo do branco isto não era assim…” : camarada António in página 13
• “ –Ê!, menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa… tinha tudo, não faltava nada…”: in página 14, camarada António
• “ – Mas tinha sempre pão na loja (…)”: in página 14, camarada António
• “ – Ninguém era livre como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo…”: in página 15, Camarada António
De facto como se sabe o período de descolonização não veio apaziguar os povos Africanos, veio antes despoletar uma nova guerrilha de interesses internos, com vista à obtenção do poder. Daí, tais comentários tenham sido tecidos pelo camarada António. Para pior, mais valia continuar como estavam…
A propósito desta questão Ondjaki diz: O camarada António defende e descreve uma perspectiva pessoal da visão que tinha do tempo anterior à independência...
A Guerra

8) Outras das temáticas presente nesta obra é a Guerra. Como é que foi crescer no meio dela?
Eu costumo dizer que as crianças e as gentes de Luanda tinham a sorte de nunca ter vivido “demasiado perto” da Guerra. Luanda sempre foi o centro político protegido da realidade mais bélica da guerra. Crescemos, então, no meio da “psicologia da guerra”, das notícias da guerra, dos ecos de uma guerra que sabíamos que acontecia sobretudo mais a Sul. E foi isso. Éramos muito crianças, e o terror associado ao facto de “ir para a guerra”, acompanhava mais os adolescentes do que a nós, meras crianças. Quando chegou a nossa adolescência, a guerra tinha adquirido já um outro formato, bem como o modo de incorporar jovens. Mas, sim, há digamos uma presença dos ecos da guerra na minha infância e adolescência. De resto, nada de traumático. Felizmente.


Apercebemo-nos no romance o clima de medo que se vivia na infância do narrador, que de facto, vem ao encontro do que Ondjaki afirma na resposta anterior. De facto existia muito e usando palavras dele a “psicologia da guerra”.
• “ Guerra também aparecia sempre nas redacções (…)”In página 129
A esse propósito criavam-se muitos boatos, os ditos mujimbos que atormentavam muitas as crianças. Ideias fantasiosas que iam passando de criança para criança.
Mujimbos

Os exemplos seguintes ilustram bem essa mesma situação:
• “ – Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer… Mais de cinquenta…” In página 45 – Eunice
• “ – Eu não vi o camião, mas tenho colegas que viram.” In página 46-Eunice
• “ – Não deu para ver (…) vi bué de homens, média duns setenta…” In página 46
• “ – Sim, dizem que eles (…)”In página 46
• “ (…) tinha de ir telefonar a alguém a contar o mujimbo do Caixão Vazio.” In página 48
Em relação ao episódio do «Caixão Vazio» este remete-nos para a ideia que haveria um grupo de homens que andavam num camião e que vandalizavam escolas, violavam raparigas, matavam pessoas. É evidente que todos estes episódios faziam com que as crianças temessem pela sua segurança e estivessem sempre bem atentos, àquilo que as rodeava.
Os mujimbos, uma das características do povo africano, neste caso angolano é uma temática que realmente se encontra bem frisada neste romance.
Para além dos que já foram mencionados podem ainda destacar-se entre outros, os seguintes:



• “ – Eu nunca vi, tia, mas toda a gente sabe que ele tem lá o jacaré…,” In página 52
• “ (…) tanta porrada, mas tanta porrada, que no dia seguinte ele voltou lá à procura da orelha, tia! (…) o Cláudio mesmo é que lhe foi mostrar onde tava a orelha (…)”In página 57
• “ Não sei, há quem diga que nessa altura de queimaram os ladrões com pneus, os assaltos diminuíram, mas isso já não lhe posso confirmar.” In páginas 58,59
• “ Se ele tivesse visto um desafio de futebol e ninguém soubesse o resultado, de certeza que o Murtala ia aí uns sete golos, vinte e duas faltas, duas expulsões e lesões do próprio árbitro (…)”In página 80
• “ (…) cada um queria aumentar qualquer coisa na versão dele.” In página 89
• “ Vou jurar aqui pela alma do meu avô (…) pra não dizerem que aumentei já o acontecimento.” In página 111
• “ Havia até pessoas que sabiam mujimbos do Kuando Kubango, , das estórias que contavam (…) “In página 129
Os mujimbos criam de facto “suspense” no próprio romance. A confirmação da sua veracidade ou não. Se atentarmos nas falas das personagens constatamos que, estes são transmitidos de pessoa para pessoa, quase sempre de forma oral, muitas vezes sem confirmação: “– Eu nunca vi, tia, mas toda a gente sabe que ele tem lá o jacaré…,” In página 52. Se as pessoas diziam, à partida era porque era verdade.
Não obstante o que acontece muitas vezes é que as pessoas começam a aperceber-se do exagero aplicado a determinadas situações e começam a desconfiar da palavra do outro. De tal forma que começa a haver a necessidade de recorrer ao juramento como forma de atestar a veracidade da afirmação proferida:
“ (…) juro aqui com sangue de Cristo, pela alma do meu avô que tá debaixo da terra (…) “
A propósito deste juramento o escritor afirma: “era uma frase comum de ser dita, e acho que era para imprimir, muitas vezes, veracidade a um mujimbo; quando quem o contava, apesar de jurar, sabia perfeitamente que poderia não ser verdade...”


Os anos 80

Retomando a questão do período político que assombra todo este romance vários são os indícios destacados ao longo dele que o caracterizam:
• “Quando eu ia tirar o meu papel com as coisas que tinha escrito, a Paula explicou-me que não era necessário porque já tínhamos ali uma folha da redacção com os textos de cada um.” In página 36
• “Não, eles tinham um papel lá da Rádio, com carimbo e tudo, já tinha lá as mensagens de cada um. Eu li uma e eles leram as outras duas.” In página 37
• “Ao pé da porta de saída das pessoas havia uma pequena confusão, vi os FLAPAS a correr, pensei já que ia sair tiro”. In página 37
• “Não consegui mais ver o macaco, começou uma pequena confusão, o outro FLAPA chegou perto da senhora e tirou-lhe a máquinas das mãos.” In página 38
• “(…) em Luanda não se podia tirar fotografias assim à toa.” In página 38
• “Não podes tirar fotografias àquele macaco…, por razões de segurança de Estado (…)”In página 40
• “ – O cartão de abastecimento. Tu tens de ter um cartão de abastecimento, não é?” In página 47
• “ – Nem tem um camarada na peixaria que carimba os cartões quando levantas peixe à quarta-feira?”
Em relação aos cartões de abastecimento achava interessantíssimo mostrar um neste trabalho. Tentei verificar se Ondjaki teria algum, ao que me responde: “não os tenho... quem me dera encontrar um!”
• “ – Pois… Escapaste é ver a cerimónia de tiros que ia haver se algum FAPLA te visse a mexer (…)”In página 53
• “ – Não, tia, aqui não se pode. Esta praia tão verzul é dos soviéticos.”
• “ Presidente em África, tia, só anda já de Mercedes, e à prova de balas.” In página 56
• “ (…) ali em Luanda havia muitos bandidos, mas que era uma profissão perigosa.” In página 56
• “ Ela só nos disse para irmos fardados, pra não esquecermos o lenço da OPA e quem quisesse podia trazer cantil. A concentração era ali na escola às sete e meia, depois íamos a marchar para o Largo 1.º de Maio.”
• “ Estávamos todos direitinhos, em sentido, passaram revista aos lenços, quem não tinha lenço podia voltar pra casa, aquilo era o desfile do 1.º de Maio (…) não admitia crianças sem o fardamento completo. “
• “ (…) uma camarada do Ministério da Educação veio distribuir bandeirinhas vermelhas, amarelas, umas do país, outras do MPLA.” In página 81
• “ (…) as mamãs da OMA , os jovens da «jota» , os pios da OPA (…)”In página 81
• “ – O MPLA é o povo…”
• “ – E o POVO É O MPLA!” In página 82
• “ – Abaixo o Imperialismo…” In página 82
• “ DOS SANTOS… AMIGO… O POVO ESTÁ CONTIGO… DOS SANTOS… AMIGO… O POVO ESTÁ CONTIGO…,” In página 82
• “ DOS SANTOS… AMIGO… A OPA ESTÁ CONTIGO… DOS SANTOS… AMIGO… A OPA ESTÁ CONTIGO!” In página 83
• “ (…) afinal estavam a dizer que a guerra tinha acabado, que o camarada presidente ia se encontrar com o Savimbi, que já não íamos ter o monopartidarismo e até estavam a falar de eleições.” In página 133
É certo que Ondjaki, ao pertencer à primeira geração descolonizada, torna-se "pioneiro", como para o "pioneiro-protagonista" é o convite da jornalista Paula, para a celebração do 1º de Maio na Rádio Nacional, como se observa na pergunta feita pela mãe: "-Olha, a Paula vai fazer amanhã um programa sobre o 1º de Maio e queria recolher depoimentos dos pioneiros... Tu queres ir?". E também é pioneiro ao pertencer à classe média emergente que possui geleira, telefone e ar condicionado, ou "ar concionado".


Temos assim patentes ao longo da obra várias referências ao período de descolonização, e a forma como a organização política se encontrava. Concomitantemente são feitas referências a outras figuras históricas:
• “Ele também falou do camarada Che Guevara(…)”, narrador, pág. 17
• “ Era a Paula da Rádio Nacional, (…)” In página 24
• “(…) ou a UNITA tivesse partido uns postes” In página 26
• “Depois vinha o intervalo com a propaganda das FAPLA.” In página 26

9) O que era a FAPLA, e como é que uma criança luandense na década de 80 tem noção dos tipos de comportamento que devia ter na presença dos agentes da FAPLA?
Um FAPLA era um soldado das FAPLA – forças armadas para a libertação de Angola, era o nome do braço militar do MPLA, e depois ficou com o nome de exército nacional, até 1992, onde as forças armadas angolanas se passaram a designar FAA e a incorporar membros da UNITA. Sim, as crianças sabiam como falar ou agir na presença de um FAPLA.
• “(…) ANC , enfim, isso eram nomes que uma pessoa ia apanhando ao longo dos anos”. In página 26
• “(…) o meu pai nos explicou quem era o camarada Nelson Mandela, (…)”In página 26
• “(…) esse camarada Mandela já estava preso não sei quantos anos.” In página 26
• “ Era um filme do Trinitá , (…)”In página 44
• “ uma pintura do camarada José Martí na entrada. “In página 122.



Ainda relacionado com a questão da guerra ao ler-se o prefácio de Ondjaki no livro de Pedro Muiambo – A Enfermeira de Bata Negra , pode destacar-se o seguinte:
Referência à Guerra (contrastes entre Moçambique e Angola)

• “Nisso da guerra – e das crueldades da guerra – o teu país é primo-como-irmão do meu, e as estórias que relatas aparecem com cheiro de drama e veracidade, porque a guerra é real.”
• “Para mim é normal que ela apareça constantemente na boca das crianças, como Isayana conversa com o tio:
- Quantos mataste até agora?”
• “No livro como na vida, a infância dá lugar à guerra (…)”
• “É tempo de as crianças dos nossos países olharem a guerra como uma coisa já distante.”

Ainda sobre esse prefácio:

10) Através de uma análise atenta ao prefácio da sua autoria no livro de Pedro Muiambo – Enfermeira de Bata Negra, o Ondjaki a certa altura despede-se dizendo: “Pedro, eu vou indo. Sinto um rumor de novas histórias iluminado pela lua nova”. O quê que a noite tem, que o faça despertar para a escrita? que tipo de inspirações lhe dá?
É muito difícil de explicar, parece sempre que quando se tenta abordar o processo de criação caímos no campo, novamente, de uma especulação oca... A verdade é que, como dizia o outro, oxalá que a inspiração nos apanhe a trabalhar quando chegar. E isso, no fundo, é a disponibilidade interna, artística, intuitiva, coincidir com um “bom momento” de escrita...


Os cubanos

11) Outra das grandes questões da obra em análise é o facto de os cubanos terem ajudado na reconstrução do seu país, do seu povo. O Ondjaki analisa este processo como “uma questão de solidariedade”. Alguma vez teve o feedback de alguns dos seus professores cubanos que referiu no seu romance?
Não, infelizmente nunca os reencontrei, embora eu os procure há muitos anos. Já estive duas vezes em Cuba, agora (Fevereiro de 2010) acaba de sair uma edição cubana do BDC, e sempre os refiro quando dou entrevistas em Havana. Mas ainda não aconteceu. Tenho muito desejo que isso venha a acontecer, sobretudo porque escrevi o livro também para eles, e porque gostaria de os abraçar e contar algumas estórias, saber deles, etc. Estou convicto que isso há-de de acontecer.
No romance Bom Dia Camaradas, são enumeras as referências feita aos cubanos que na altura, do período de descolonização e das guerras subsequentes vieram auxiliar os africanos. Angola foi um dos países de excelência onde os cubanos se instalaram, o que de facto marcou a vida de muitos angolanos e daí as enumeras referências a este povo:
• “O camarada professor disse mira, yo trabajo desde hace muchos años y todavia no tengo uno, e nós ficámos muito admirados porque quase todos na turma tinham relógio.”: narrador, In página 17.
• “ A professora de Física também ficou muito admirada quando viu tantas máquinas de calcular na sala de aula”, narrador in página 18
• “E quem tinha os olhos mesmo bem acesos era o camarada professor Ángel, tipo nunca tinha visto tanta comida junta, dava gosto ver-lhe atacar o pão com compota.” In página 43
• “ A camarada professora María só faltava já babar, o que ela não fazia porque estava sempre de boca cheia a comer a compota de morango.”
• “ – Eu acho que eles são muito corajosos… Nunca ouvi nenhuma estória de cubano que estivesse a fugir de combate.” In página 75
• “ Os camaradas professores cubanos até nisso eram simpáticos porque quando apanhavam alguém a cabular só davam um aviso, não tiravam o ponto à pessoa.” In página 119
• “ Sentámos ali nos cadeirões com bué de buracos, começamos a olhar: tinham uma tv a preto e branco, a mesa só tinha três pernas e tinha ao lado uma cadeira igual à que havia na escola.” In página 122
• “ Eu não disse nada mas também achei que estava a cheirar a mofo.” In página 122
• “Ele me abraçou e limpou as lágrimas.” In página 125
Através das citações anteriormente destacadas apercebemo-nos de facto, da humildade dos cubanos, o facto de não terem uma vida economicamente viável, apesar de muitos serem professores. A estranheza que demonstram em ver objectos que muitos alunos possuíam, eles próprios, relógios, máquinas de calcular…
A satisfação quando são convidados para irem lanchar a casa de algum aluno e o excesso de comida que os faz “babar”…
Apesar de toda a humildade, de virem num socioeconómico baixo, não deixam de revelar um sentimento de patriotismo com os angolanos, não “fogem ao combate” e sobretudo são seres humanos de uma sensibilidade extrema. A forma emocionada como se despendem dos alunos revela isso mesmo.
“ (…) la educación es una batalla.” In página 110
“ (…) los niños son las flores de la Humanidad!” In página 111
12) Como é que vê a escravatura e tráfico de crianças, em países como o Gana, por exemplo?
Vejo como um problema muito grave. Assim como os maus tratos sexuais às crianças europeias e americanas; e à pedofilia também associado ao tráfico de crianças europeias e asiáticas...
“(…) caneta ser a arma do pioneiro.” In página 29
A última frase estava escrita nos cadernos do ensino primário: “a caneta é a arma do pioneiro!” (Ondjaki)


Não menos importantes são os «ensinamentos de vida» que os professores cubanos transmitiam aos seus alunos. A lutarem pelos seus ideais, pela sua educação, pelo seu sucesso escolar.
A amizade e a inveja

Outra questão que é analisada no romance está relacionada com a amizade versus inveja.
Seguem-se alguns exemplos que mostram bem essa dualidade:
• “Já a Petra todos os dias estudava, metia raiva, aquela miúda (…)” In página 23
• “Bem feita, que é pra não se armar em chica esperta e ver se fica um bocadinho menos agitadora.” In página 31
• Fui abrir a porta ao camarada António, e claro que lhe disse que tinha chaves e que não era preciso.” In página 33
• “A Petra só dizia com ar de gozo (…)”
• “ – Ró…” In página 66
• “ – Só não podemos cair, Ró, não podemos cair…” In página 69
• “ A Romina agarrou-me a mão com muita força, (…)”In página 69
• “ Eu e a Romina éramos amigos há muito tempo (…)” In página 73
• “ Para mim tinha sido bom, agora que tudo tinha passado, termos corrido juntos.” In página 74
Confrontado com esta dualidade de sentimentos que o narrador expressa principalmente com Petra e Romina, o autor do romance afirma que: “a Petra e a Romina foram um pouco “aumentadas” para imprimir um outro ritmo à estória. Eu não tinha inveja da Petra, o narrador é que tinha.”
Continuando na análise da rede de afectos do narrador, verifique-se que este nutria uma grande cumplicidade com a mãe (relações afectuosas, carinho), ao passo que o mesmo não acontece com o pai que por exemplo prefere «ouvir as notícias das 13 horas», ao invés de saber como correu a manhã de aulas das filhas.

Relação com a mãe:

• “(…) deu-me um beijinho, foi para a casa de banho (…)” In página 23
• “ Deu-me só um beijinho e disse-me para eu pensar naquilo do 1.º Maio para a rádio (…)”In página
• “ O sonho foi tão barulhento e cheio de confusões e tiros, que a minha mãe teve que me acordar quase de manhã a pedir-me para eu não dizer tantos disparates enquanto sonhava.” In página 48
• “ – Correu tudo bem, filho? – a minha mãe veio me dar um beijinho.” In página 61
Em relação à temática de afectividades, entre o pai e mãe, Ondjaki revela que “Por alguma razão nem o pai nem a mãe aparecem tanto na obra. Acho que literalmente eu tinha outras prioridades...”
A questão da oralidade

13) A questão da oralidade africana é algo que está bem patente neste romance, através da forma como explicita as ideias, dos vocábulos que utiliza, da construção frásica. Como é que vê a questão da oralidade, tão patente nos seus ancestrais? Acha que é fundamental na História de um povo, e daí quere-la transmitir nas suas obras?
Não, não quero transmitir a “oralidade africana” nos meus romances. Quero escrever romances que têm um estilo e um ritmo que a própria estória-ficção me dita. É só isso. Porque é muito fácil dizer que BDC ou o livro “Quantas madrugadas tem a noite” tem muita influência da oralidade africana, mas depois se formos falar do livro “O assobiador” ou mesmo o “Actu Sanguíneu”, onde é que fica essa oralidade? Penso que se trata de estilo e de necessidades, ou soluções, estéticas. Entenda que os vocábulos que utilizo e a construção frásica num livro como BDC, são uma “solução estética” para o livro em causa. Servem melhor ao livro e à estória que queria contar. Não servem um propósito maior de transmitir a oralidade africana...


Linguagem e estilo

14) Através da consulta da sua biografia constatei que desde cedo se dedicou à leitura de vários nomes da literatura, entre os quais Satre. Como comenta a afirmação do escritor: “ Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, Mas por haver decidido dizê-las de determinado modo.” Considera que a introdução de determinados vocábulos de Kimbundu, por exemplo, nas suas obras as torna peculiares?
Não... O kimbundu é um “pequeno” recurso, aliás, natural, porque eu sou de Luanda e há grande influência da língua kimbundu na zona de Luanda. A única coisa que poderá tornar um livro peculiar, ou bom, ou interessante, é a sua “força literária”. Como isso se manifesta, é discutível, pode ser o ritmo, o conteúdo, a abordagem, o formato, etc. Mas se não tem alguma força, alguma “intensidade de conteúdo”, então você até o pode escrever em grego misturado com umbundu, não é por isso que chega ao mérito literário.
Ao lermos o romance apercebemo-nos da existência de inúmeras palavras, dito «calão» que abaixo se transcreve:
• “(…) yá (…): In página 16, narrador
• “ Ele estava a chorar e bazou para casa!!!”: In página 17, narrador
• “ é ir falar, né?” In página 25
• “(…) a Taag depois ainda melhorou uns coche (…)”In página 27
• “(…) ché!, eu ia zunir bué(…)In página 28
• “(…) haver uma borla todos os dias (…) In página”28
• “- Epá (…) e tinha bué de feridas…” In página 29
• “ (…) gamam mochilas, te chinam, violam miúdas (…)”In página 29
• “ (…) ché, só o poster!, tava a matar.” In página 34
• “ – Sim, ninguém gama essas tartarugas?” In página 35
• “O macaco lhe esticou uma lambisgóia do lábio que até saiu sangue.” 35
• “ (…) até fiquei burro, poça, (…) “ 35
• “ O macaco delirava, dava saltos mortais na cabeça da Kota, (…)”In página 38
• “ (…) avião acelera bué parece que vai se partir todo.” In página 41
• “ (…) o Murtala era muito fobado (…)”In página 43
• “ (…) o camarada presidente passa sempre a zunir (…)”In página 51
• “ (…) quando queres baldar (…) “In página 80
• “ (…) armou-se em parvo (…) palerma.” In página 81
• “ – Ouve lá, meu palerma…” In página 85
• “ (…) aqueles cabrões (…) “In página 85
• “ (…) começa só a desbobinar!” In página 101
• “ (…) também comiam bué de porrada (…)“In página 108
• “ (…) mamou vinte e quatro bifes (…)“In página 121
• “ – Seus burros!, temos que ir de noite!” In página 124
• “ (…) bué de ranho a cair do nariz?!” In página 125
Através da listagem destes vocábulos apercebemo-nos o quão ela é dominante neste romance. De certa forma, deixa de ser estranho, quando o narrador se assume criança, e, de facto este tipo de expressões, mesmo na sociedade portuguesa existe, no meio infantil. É evidente que a linguagem e estilo deste romance se caracterizam pela utilização do calão. Como podemos verificar pela entrevista o autor não pretende de forma directa transmitir a dita «oralidade», se bem que neste romance ela esteja patente, nomeadamente na utilização de frases incompletas, “- Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer…” In página 45.
A não preocupação da utilização de sinais gráficos (travessão) para iniciar o discurso, assim como as pausas no mesmo: “Mas, camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?, eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha.” In página 13
A forma como o pensamento e a linguagem se misturam, assim como o recurso a vocábulos em umbundu, como por exemplo: camba, campar, candengue…






A poesia de Ondjaki

15) tinha aprendido que era muito importante
criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar
o cinzento. não munido de nenhum
artefacto alegre, inventei um espanador de
tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.
In: Materiais .., p. 7
Fernando Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e pela própria efemeridade. Muitas vezes, a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência. Considera que o próprio Ondjaki traduz essa mesma tristeza nos seus poemas?
Há pouca tristeza, digamos assim, na poesia que tenho publicada. Publiquei três livros de poesia, e o primeiro só está disponível em Angola. Nesse primeiro, eventualmente, poderemos encontrar traços dessa “tristezura” que, sim, muitas vezes se passeia dentro de mim... Mas os outros dois livros, penso que não. Justamente gosto deles por se oporem a esse mundo interno um pouco menos alegre que tantas vezes me assola. É o meu lado de poeta, menos festivo e mais sério, talvez, que o meu lado de contador de estórias. Há muitos anos que deixei de entender o significado da palavra felicidade. Busco mais os meandros arejados da palavra “equilíbrio”...






A sua passagem por Portugal

16) Apesar de não valorizar vivamente o seu curso de sociologia, até que ponto alguém que tem uma base de formação num estudo de interacção de diferentes pessoas, em diferentes tipos de sociedades, lhe permite uma adaptação aos diferentes locais por onde vai passando?
Não sei... Acho que há sempre uma componente profissional e uma componente “pessoal” em tudo o que fazemos ou somos na vida. É-me difícil separar isso. Eu tenho graus relativos de adaptação aos locais por onde passo, e às vezes, dentro de mim, não seu bem aquilo que vou aparentando ser, não num sentido cínico de me dar às pessoas, mas porque, como todos os seres humanos, elevadas contradições entre sentires se operam dentro de mim, ao tomar contacto com diferentes pessoas ou lugares. Adapto-me, assim, a alguns lugares do que a outros. Por exemplo, nunca me adaptei a Nova Iorque, e fiquei lá apenas 6 meses, quando deveria ter ficado 3 ou 4 anos a fazer um mestrado. Inclusivamente saí de lá, abandonei o mestrado em virtude da minha “impossibilidade” de ali viver pacificamente... A vida é cheia de tendências...
17) Numa outra entrevista dada em 2007, Ondjaki afirmava que o facto de ter estudado em Portugal, mais concretamente, em Lisboa, lhe havia permitido e passo a citar “livrar-me de alguns mal entendidos históricos que carregava.” Que mal entendidos eram esses e o que o fez mudar de opinião?
Bom, crescendo em Luanda, nos primeiros anos após a independência, processavam-se, ao nível da escola, alguns equívocos relativos à ideia dos “colonialistas”. Com isto não quero dizer que não se passavam também as ideias correctas (do ponto de vista histórico) de todo esse complexo processo. Mas havia, na minha cabeça, sobretudo enquanto criança, uma ideia, digamos assim, um pouco equivocada do que eram “os portugueses”. E estar e estudar em Portugal, permitiu-me, obviamente, conhecer alguns portugueses de perto, inserido no seu dia a dia, na sua cultura. Isso libertou-me de alguns preconceitos que eu levava quanto aos portugueses. E confirmou outras certezas, sem dúvida. Também essa vivência em Portugal me permitiu conhecer e contactar com gentes de outros países africanos e do Brasil, o que me despertou para um novo olhar sobre esses povos e sobre o seu modo de usarem e falarem a tal de Língua Portuguesa.

18) Há previsões quando virá a Portugal?
Não.
Ligação ao mundo das Artes

19) A sua mãe era professora. De certo modo por episódios familiares que conheço, ter um pai ou uma mãe professores marcam a nossa infância. Há sempre aquela preocupação, acompanhamento individual. Terá sido que o levou para o mundo da escrita?
Sim, a minha mãe era professora. Isso teve muita influência, acho eu, na minha relação com a língua portuguesa, e com o acto de ler, talvez. Com a escrita, não sei dizer. Não acho que exista um modo de se saber como é que alguém chega à escrita (de livros), embora muitos escritores estejam convencidos que sim, que sabem como foi... A minha mãe e também o meu pai, sempre tiveram um zelo muito grande com a nossa educação, com a escola, os deveres de casa, estudávamos durante as férias grandes, etc. A escola, a academia, sempre foi uma prioridade demasiado séria em toda a minha família. A escrita chega porque tinha de chegar. Assim como um dia poderá ir-se embora.
20) Quem foi a primeira pessoa a ter contacto com aquilo que escrevia?
Não me lembro... Não sei bem... Porque “aquilo que escrevia” teve vários formatos. Primeiro foi a poesia em cadernos meus, depois escrevi um jornal na escola, ainda em Luanda, mas isso eu considerava uma espécie de ficção humorística para fazer os jovens colegas chegarem à leitura. Não gostavam de ler os meus colegas de escola, e se fosse algo cómico, satírico, aceitavam ler. Fiquei fascinado com o poder dessa ficção que “fazia ler” até os que não gostavam. Vi que se tratava de uma questão, afinal, de conteúdo. De estilo também, mas sobretudo de conteúdo. Depois comecei com os contos, e aí deve ter sido algum familiar, alguns amigos...
21) Se eu lhe pedisse uma frase para cada um, que caracterizasse a literatura de Luandino Vieira, Mia Couto e José Eduardo Agualusa. Quais seriam essas 3 frases?
Não saberia dizer... São três importantes escritores de Angola e Moçambique, com trabalhos e contextos distintos entre si. Mas preciso dizer que Luandino Vieira e, por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho, são dois autores que estão à altura de receber um Nobel. Bem, é isso que eu sinto como leitor universal, não como cidadão angolano.
22) Considera que o facto de ter crescido, numa cidade multicultural como Luanda poderá ter contribuído para acentuar o seu lado criativo na Vida?
Sim, não sei se há uma relação directa, mas Luanda tem um ritmo de vida, de quotidiano, que certamente influencia quem lá vive. Há quem se deixe contagiar menos ou mais, há quem seja mais ou menos exuberante nessa vivência, mas ela é poderosa no seu ritmo e pressão.
23) Para além da sua relação com a escrita destaca-se a sua ligação à pintura, teatro e cinema. Como é que nasce esta sua ligação a todas estas formas de arte?
Foram épocas de experimentação, além de que, sinceramente, mesmo me considerando um perfeito amador, gosto muito de teatro. Gostaria muito de voltar a actuar, um dia destes... Mas, de resto, são coisas que faço para me experimentar, para me conhecer, e depois voltar à escrita. Com o tempo vamos limando as nossas ferramentas... E as minhas usam ser as da escrita.
24) Como foi iniciar este romance? Quantas vezes teve de modificar o 1.º parágrafo? O que custou mais, o iniciar ou o finalizar do mesmo?
Não, o primeiro parágrafo não alterei muito, acho eu... Foi natural começar o romance, porque estava com pressa de o entregar, tinha um prazo, digamos assim, acordado com o editor angolano... O que mais me custou foi fazer a “travessia emocional” pelas memórias que tive de invocar para chegar ao livro como um todo. Fiquei surpreendido com o poder sensorial dessas invocações... E acaba por ser um trabalho muito terapêutico, por razões óbvias.
25) Que misto de sensações o rodearam ao ter na mão o seu romance publicado, Bom Dia Camaradas, sendo este o 1º?
Foi interessante... Na altura senti que tinha feito uma longa caminhada para chegar ali. O que não era verdade. E como era uma estória tão autobiográfica, eu olhava para aquilo mais como um caderno de memórias do que como um livro de ficção. Só anos depois me fui apercebendo de que havia feito, de facto, um interessante exercício de transposição das memórias para a ficção. Mas não posso falar muito disto, porque fica mal estar a elaborar sobre o meu livro...
O Autor pelo mundo

26) Aquilo que temos vindo a assistir nos últimos tempos é que os grandes nomes da literatura africana se têm vindo a separar fisicamente do seu continente de origem e a estacionarem por outros locais no mundo, que não África. Sente que tal fenómeno, se deve ao facto de o Governo Africano ainda não ter criado as condições ideias para o desenvolvimento dos diferentes tipos de Arte e não reconhecer o potencial dos seus «filhos»?
Não. Estou convencido que, na maioria dos casos, tem a ver com circunstâncias do foro pessoal, e não profissional. Sabemos de casos que estão relacionados com as opções políticas dos escritores, e esses são casos específicos. Agora, África é um continente, e eu não sei do que se passa em todo o continente, nem estava ciente, antes de você me dizer, que os grandes nomes da literatura africana se separaram do continente de origem... Realmente não sabia. Assim como também desconhecia que havia um “Governo Africano”, ou, querendo ser mais condescendente com a sua terminologia, não sabia que os governos africanos (no plural) se comportavam como uma entidade uníssona que “não cria as condições ideais para o desenvolvimento dos diferentes tipos de Arte”. Na minha modesta opinião, o continente africano que conta com 54 países, apresenta uma diversidade étnica, cultural, política e ideológica tão intensa, que não me fica claro como será possível falar, ou pensar, num “Governo Africano”... Mesmo enquanto ideia abstracta, a designação certamente abusaria da generosidade do termo “ideia abstracta”...
27) Mia Couto tem um livro intitulado Cada homem é uma raça. Apesar de as suas raízes se fixarem bastante no continente Africano, mais especificamente, Angola (Luanda), como é que vê o seu deambular pelo Mundo? Entende o fenómeno da globalização como a aproximação de raças e culturas, permitindo dar a conhecer ao Mundo as suas raízes?
Bom, são sempre opções pessoais... E a viagem é um cruzamento de circunstâncias entre aquilo que a vida nos permite, e aquilo que decidimos que queremos fazer dela. Pessoalmente, sempre gostei de viajar e isso sempre me ajudou a ver e a compreender melhor as outras culturas. É esse o grande ganho, sim.

28) Os seus livros encontram-se já traduzidos em diversas línguas, francês, inglês, alemão, italiano, … Como é que um escritor ainda tão jovem, 33 anos, vê todo este reconhecimento espalhado pelo mundo?
Sinceramente, penso que esse escritor de 32 anos (ainda não fiz 33) tem que se concentrar em escrever melhor o seu próximo livro. E crescer: lendo, comparando, viajando, concentrando-se na seriedade da sua escrita. O que é a seriedade? É a honestidade literária. O saber cortar quando tiver que cortar. O saber estar calado quando nos fazem perguntas às quais não sabemos responder. Saber optar pelos momentos certos, pessoais e literários, sem ceder à vaidade. E é sabido que a vaidade nos chega e nos “ataca” por mecanismos secretos. Há que estar atento. E seguir a viagem com alguma tranquilidade. É isso que digo a esse escritor quando o encontro ao espelho. Se ele acredita, não sei...
29) Em relação ao acordo ortográfico. Não considera que a sua prática põe em causa a singularidade da literatura numa cultura, seja ela, qual for?
Só penso que não entendi bem quais foram as razões que levaram as pessoas a fazer e assinar este acordo, neste preciso momento. E por outro lado, quanto às consequências, só saberemos daqui a 50 ou 100 anos, porque agora estamos ocupados, ainda, em viver o processo. Portanto, desculpe, não sei quase nada sobre esse tal de acordo ortográfico....
30) Estamos em 2010, pode-nos adiantar em primeira ou segunda mão, como quiser, que tipo de género literário se encontra a escrever ou tem em mente?
Estou a terminar a revisão de um novo romance, o que normalmente leva algum tempo. E a terminar estórias infantis... E também a rever um antigo livro de poemas... E também a rever um novo livro de contos...
31) O quê que no seu ponto de vista faz com que um leitor que não saiba quem é o autor do romance, neste caso o Ondjaki o identifique pela forma como escreve?
Não saberia responder... E espero que o leitor se interesse pela obra, pela estória a ser contada, e não pelo autor. Não preciso que me identifiquem como autor, mas gostaria que considerassem o que conto uma “boa estória”. Apenas isso.


32) Quais as diferenças para si entre estória, história e História? Nós cá em Portugal não usamos a palavra estória!
Aprendi na 4ª classe que História, com “h” maiúsculo, era o que de facto se havia passado, sobretudo relacionado com factos e personalidades históricas. Nomes e personagens. Etc. História, com “h” minúsculo, é uma simples estorieta, um facto normal, comum, que de facto aconteceu, mas que não envolve personagens ou situações históricas. Um almoço, um “causo” de rua. E “estória” é algo mais subjectivo ou relativo, que depende de quem conta, e certamente deve conter algo de ficcional...
Adicionar uma legenda
À CONVERSA COM ONDJAKI:
ENTREVISTA EXCLUSIVA RICARDO PINTO:
Nadlu de Almeida nasceu em Novembro de 1977 em Angola, na belíssima cidade de Luanda.
Durante a sua infância começam a surgir fortes indícios de que aquela criança viria a tornar-se um nome incontornável da literatura contemporânea. Começou por utilizar as sebentas da escola para elaborar os seus primeiros textos…
Com 13, 14 anos começa a aventurar-se no mundo da leitura, começando com nomes ímpares da literatura como Satre, García Márquez e Graciliano Ramos.
Anos mais tarde assume uma faceta de escritor que faria engrandecer a cultura africana de expressão portuguesa.
Viria a assinar as suas obras com o pseudónimo Ondjaki. Palavra em umbundu, Ondjaki significa literalmente «aquele que enfrenta desafios» . O escritor confessa que era para se ter chamado Ondjaki, mas à última hora os seus pais decidiram mudar-lhe o nome. Quando conheceu a escrever assume, ter achado bem pegar nesse nome que outrora lhe estivera destinado.
Poeta e prosador, também escreve para cinema e co-realizou um documentário sobre a cidade de Luanda (“Oxalá cresçam Pitangas – histórias de Luanda”, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos e da Associação Protectora do Anonimato dos Gambuzinos.
Aos 32 anos de idade, vê reconhecido o seu trabalho pelos quatro cantos do mundo. Alguns dos seus livros foram traduzidos para francês, espanhol, italiano, alemão, inglês, sérvio, sueco e chinês.
Ondjaki caracteriza-se de facto pela sua versatilidade. Do conto, ao romance, à novela, à poesia, à literatura infantil, vem ainda acrescer o seu gosto pelo cinema, teatro e pintura. Questionado sobre toda esta envolvência nos diferentes tipos de arte, o escritor afirma gostar “de estar com os poros abertos e sofrer pressões de todas as artes, e de vários mundos, individuais e colectivos.”
Actualmente encontra-se a viver no Brasil, Rio de Janeiro, sendo que viaja constantemente pelo mundo, de destacar por exemplo a sua viagem a Cuba em Fevereiro passado.
Apesar de ainda muito jovem, o escritor angolano já soma no seu percurso importantes prémios que abaixo se destacam:
PRÉMIOS

-"Actu Sanguíneu" (poesia) Menção Honrosa no prémio António Jacinto (Angola, 2000)
-"E se amanhã o medo" (contos), Prémio Sagrada Esperança (Angola, 2004)
-"E se amanhã o medo" (contos), Prémio António Paulouro (Portugal, 2005)
-Finalista do prémio “Portugal TELECOM” (Brasil, 2007), “Bom dia Camaradas”.
-"Os da minha rua" (contos), Grande Prémio APE (Portugal, 2007)
-Finalista do prémio “Portugal TELECOM” (Brasil, 2008), “Os da minha rua”.
-Grinzane for Africa Prize - Young Writer (Italia/2008)




Nota: O romance utilizado para o presente trabalho foi:
• Ondjaki (2007); Bom Dia Camaradas; Editorial Caminho; 2.ª edição;












Metodologia do trabalho:

No âmbito da disciplina de Culturas Africanas Comparadas o presente trabalho tem como base fundamental uma análise à obra de Ondjaki, fundamentada na análise do seu primeiro romance, Bom Dia Camaradas (2001).
Nesse sentido o presente trabalho orientou-se em duas fases:
• Numa primeira fase foi lido e analisado o romance do escritor angolano, Bom Dia Camaradas, de 2001. Neste patamar do trabalho pretendeu-se analisar a forma de escrita, o seu estilo, linguagem, organização e mensagem transmitida;
• Numa segunda fase e porque nada melhor, do que o próprio escritor ser a nossa fonte de informação foi realizada uma entrevista via e-mail com o escritor em estudo.
Relativamente à escolha do romance para análise: confesso que até ao início deste ano lectivo desconhecia o escritor Ondjaki. Quando me começaram a falar nele havia aspectos que se frisavam e, que de facto me suscitaram curiosidade. Entretanto intercalou-se o Natal e chegou até mim esse mesmo romance. Numa primeira instância li o livro numa só noite. Era de facto uma estória envolvente, que dava vontade de continuar a ler e verificar o que se seguiria na intriga.
Para este trabalho de análise li novamente o livro de uma forma mais atenta, distante e tentei captar a essência do mesmo.
Portanto, uma vez que há aspectos da análise que se interligam com a entrevista concedida, não será feita uma análise estanque a cada fase, mas sim de uma forma complementar.




Objectivos a alcançar:

• Analisar o romance Bom Dia Camaradas de Ondjaki:
• Discutir a questão da infância;
• Verificar até que ponto se trata de um romance autobiográfico;
• Apontar algumas das tradições patentes na infância do narrador;
• Confrontar o autor do romance com a clarividência da predominância do cheiro na obra;
• Tentar compreender a dinâmica das personagens apresentadas;
• Compreender de que forma os mujimbos invadem a realidade angolana;
• Caracterizar o momento relativo ao tempo da estória (anos 80);
• Analisar o fenómeno de descolonização e o impacto na sociedade;
• Vivenciar a integração dos cubanos na sociedade angolana;
• Estabelecer as relações afectuosas do narrador;
• Discutir a questão da oralidade africana no romance;
• Caracterizar a linguagem e estilo patentes na obra;
• Conversar com o autor sobre outros aspectos relacionados com a sua vida.






1) A infância é um elemento muito produtivo na sua literatura. Noto que o seu olhar nessa mesma infância é um olhar do presente sobre o seu passado. O porquê de todo esse fascínio pelo mundo infantil, mais concretamente, a sua infância?
Qualquer tentativa de explicar esse fascínio pela infância, está condenada a uma solução especulativa, quase abstracta... Talvez, como diria Manoel de Barros, eu só saiba falar disso, ficcionalmente. Depois teria que acrescentar que “não é bem assim”, no meu caso. Sei e gosto de falar de outras coisas, mas há um lado ficcional, que trata de uma infância de certo modo “autobiográfico”, que me faz escrever com ternura e com prazer. O que não acontece sempre. A verdade é que escrever sobre universos que tocam a minha infância muitas vezes se configura como uma “urgência estética”, e escrever sob esse estado de encantamento, é uma experiência muito agradável, do ponto de vista humano...

De facto a própria contra-capa do romance diz-nos que a «Infância é um antigamente que sempre volta» . Este livro retrata isso mesmo, a infância de um menino nos anos 80, o narrador, que se designa de Nadlu. Relativamente ao facto de a personagem ter o mesmo nome do registo civil do autor da obra fez com que eu, o questiona-se:
2) Podemos classificar este romance como autobiográfico, na medida em que o próprio narrador se chama Ndalu?
Quer me parecer que sim, mas não se deve chegar a essa conclusão pelo nome do personagem...
É evidente que pelo levantamento de diferentes situações que nos vão sendo narradas ao longo do romance, assim como a confirmação do autor em como o nome de todas as personagens do romance Bom dia Camaradas são “verdadeiras” recria bastante a sua própria infância.






Figura 1- “Teria 5 ou 6 anos. A árvore é um abacateiro.”
O abacateiro apresentado na figura 1 encontra-se referenciado no romance na página 116: “Dali não via o abacateiro, mas podia ouvir as folhas dele, sentir o cheiro forte, ouvir um abacate cair.”
Infância do narrador - núcleo de personagens envolventes:

Outras referências são citadas na obra que nos remente para a infância do narrador:
• “ Eu ia ficar atrapalhado se no meio da correria os óculos caíssem (…) “
“ (…) só não podia correr muito tempo porque eu também sofria de asma.” In página 71;
• Pai trabalhava no ministério: “- O camarada João era motorista do ministério. Como o meu pai trabalhava no ministério ele ajudava nas voltas da casa.”: In página 15;
• “- Bom dia, camarada António…” In página 21
• “ No final da tarde a camarada directora veio falar connosco (…)”In página 18
• “ As minhas irmãs chegavam da escola, o meu pai também chegava.” In página 25 ´
• “Eu e ela tínhamos aulas à tarde, ela porque era professora e eu porque era aluno” In página 27
A mãe era professora, dava aulas à primária, desde a 1ª à 4ª classe; por vezes, era chamada a dar aulas de português ao 5º e 6º ano).
• “Como dizia a professora Sara, parece que vocês não sabem que a vossa missão é estudar (… )”In páginas 28 e 29
• “Murtala, assustado, aqueles olhos de rato já bem acesos.” In página 29
• “Petra ia ter medo, mas sempre mais preocupada com as aulas, In página 30
• “ A Romina convidou alguns colegas e os camaradas para irem lanchar à casa dela (…) “In página 43
• Tia Dada: “ – Dona Eduarda, por favor, saia do carro…” In página 53
(A tia Eduarda, ou tia Dada, como era carinhosamente tratada nasceu e cresceu no Namibe, que antigamente se chamava Moçamedes; quando foi para Portugal viveu no Cacém) Ondjaki
Tradições patentes na infância do narrador:

• “Ele me deixou na escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha chegado de boleia. Nós costumamos gozar sempre quem chega de boleia (…)”: narrador, In página 16
• “Os professores escolhiam dois monitores por disciplina(…) e tinha que se saber tudo sobre a disciplina e não se podia tirar menos de 18. “ narrador, In página 18

3) Alguma vez foi monitor? E consegui tirar o 18?
Fui monitor da Física, na 7ª classe, e sim, tirei 18 algumas vezes.
• “(…) quando entrava alguém na sala de aula tínhamos que nos pôr de sentido e fazer aquela cantoriazinha, que uns e outros aproveitavam para berrar: bua taaardeeeee… camarádaaaaa… directoraaaaaaa. (…) atééééééééeé… manhãããããã… camarádaaaaaaa directoraaaaaaaa!” In páginas 18 e 19
• “Matabiachar cedo em Luanda, cuia!” In página 21
• “ (…) mas não conversámos muito, até porque na escola se um rapaz está toda hora a conversar com uma rapariga, assim já vão dizer que ele quer engatar, que tá a dar xaxo, ou então, que é pior, dizem que é um rapaz que só quer andar com meninas.” In página 80
• “ (…) a escola não tinha casas de banho, não sei pra que aquela conversa (…) “In página 81
• “ (…) toda a gente gostava de chegar de boleia no dia das provas (…) “In página 116
• “ (…) toda a gente desenhava coisas relacionadas com a guerra (…)”In página 128
• “ Desenhar armas era normal, toda a gente tinha pistolas em casa (…)” In página 128
• “ Guerra também aparecia sempre nas redacções (…)”In página 129

4) Ao longo do romance em análise, Bom Dia Camaradas, apercebemo-nos da facilidade com que reconstrói mundos, vivências e sobretudo cheiros com bastante pormenor. Podemos considerar que todo este processo se trata de uma espécie de nostalgia da infância e/ou uma maior facilidade de o presente encontrar o passado?
Não sei. Talvez o apelo aos universos ‘sensoriais’ seja um recurso para chegar a certos lugares da memória. Há sim, em mim, uma ‘boa nostalgia’ pela infância, sendo que é um mundo que, no presente e no futuro, tenho tendência para recordar como muito bom, tempo de felicidade, de encantamento pela simplicidade da vida, coisas que fui perdendo com a idade mais adulta, uma vez que “interpretar o mundo” acaba por complicar a visão que dele temos... De resto, é um recurso literário como qualquer outro, mais ou menos consciente, dependendo do momento da escrita.

Ao longo da obra em análise encontram-se bem patente o recurso aos elementos sensoriais, sobretudo do cheiro através das seguintes passagens:


Referências aos diferentes tipos de cheiro

• “Todos os dias ele tinha o mesmo cheiro, mesmo quando tomava banho, parecia ter sempre aqueles cheiros da cozinha.” In página 14 (referência ao Camarada António);
• “Há assim um fresquinho quase frio que dá vontade de beber leite com café e ficar à espera do cheiro da manhã.” In página 22
• “O cheiro da cozinha, o apito da panela, a movimentação do camarada António, tudo me diziam ser onze horas.” In página 23
• “Mas aquele quente-abafado misturado com o cheiro a peixe seco queria dizer, isso sim, que tinha chegado um voo nacional” In página 37 (episódio em que o narrador se dirige ao aeroporto para receber a tida “Dada” que chegava de Portugal.
• “Depois abriu a janela e parecia que estava a fazer como eu faço de manhã, a cheirar o ar”. In página 40 (Referência à tia “Dada”).
• “ Aquele cheirinho abriu-me o apetite, há quem não goste, mas eu acho que o peixe seco cheira muito bem, parece sumo concentrado do mar.” In página 41
• “ Senti o cheiro da comida vir da outra sala, era peixe grelhado de certeza absoluta.” In página 62
• “ Do meu lugar eu via a chávena à minha frente, o fumo que saía da chávena, sentia o cheiro do pão torrado, o cheiro da manteiga a derreter nele (…) “In página 77
• “ (…) na minha casa, com este jardim, noite tem cheiro (…) “In página 97
• “ (…) a noite traz outros cheiros para esta varanda (…) “In página 97
• “ (…) um cheiro quente que pode ser uma coisa, imaginem onde se ponha rosas muito encarnadas, (…) “In página 97
• “ (…) tudo cheirinho de sobremesas deliciosas (…) “In página 108
• “ (…) continuava no ar aquele cheiro de despedida.” In página 108
• “ (…) porque despedida tem cheiro, vocês não sabem, né?, (…) “In página 109 (Referência à despedida dos professores cubanos no final do ano lectivo)
• “ (A Romina olhou para mim, ela sentiu o cheiro nesse momento.) ” In página 109
• “ Antes de chegar perto sente-se logo o cheiro do tufo de chá de caxinde, (…) “In página 115
• “ Dali não via o abacateiro, mas podia ouvir as folhas dele, sentir o cheiro forte, ouvir um abacate cair.” In página 116
• “ (…) a parte de trás das salas, ali onde cheirava bué a chichi.” In página 140
• “ (…) a água é que trás todo aquele cheiro que a terra cheira depois de chover, (…)” In página 135
5) Já ouvi comentários, de que o Ondjaki é de facto o «escritor dos cheiros». Considera-se um jardineiro de cheiros e aromas?
Não, só me considero um mero contador de estórias. E ainda tenho muito que aprender... Trabalho com esses recursos, porque me fazem sentido, porque é o modo que a minha escrita conhece de transmitir algumas coisas que, descritivamente, nem sempre ficam bem.
• “Alguns colegas cheiravam muito a cantiga (…)”In página 28
• “Estava muito calor, e lembro-me de ter sentido uma vez mais aquele cheiro generalizado de cantiga”. In página 32
• “Fingi que estava a limpar o suor da testa com a manga da t-shirt e aproveitei para cheirar o meu sovaco. Podia estar pior…, pensei.” In página 34
• “ Ai o meu sovaco já tava mesmo a cheirar (…)” In página 39
• “ (…) as minhas irmãs já tinham chegado a casa e também estavam a cheirar a cantiga(…)”In página 40
• “ (…) especialmente o Bruno e o Cláudio que também tiveram de lavar os sovacos porque aquilo já era de mais.” In página 43
• “ Olhei para as árvores, os pássaros estavam lá sentadinhos, não se mexiam, também deviam estar a suar.” In página 60
• “ (…) mas eu, com o suor e a massa dos óculos (…)”In página 66
• “ (…) nem mingúem a correr (pra evitar a cantiga) “In página 80
• “ (…) porque ela já me tinha dito pra eu não andar a correr à toa que ficava suado e sujo(…)”In página 81

6) Luanda é sem dúvida uma cidade de muito calor. Esta repetição de «suor, sovaco», foi intencional no romance? Afinal por que motivo falar tantas vezes na dita «cantiga »?
É um recurso sensorial... que também funciona como recurso descritivo... mas eu não entendo nada disso...

Camarada António

7) No romance em análise assistimos à morte do Camarada António, que, pelo que dá a perceber, apesar de ser um criado lá de casa, não é um simples criado. Não obstante, a forma como nos dá a conhecer a morte dele é muito superficial, é como que haja um processo de suavização da morte do camarada. Como é a sua relação com a morte e sobretudo perder algum ente querido em duas vertentes, na realidade e no papel?
Primeiro, devo esclarecer, o camarada António não era um criado. Era um empregado. Uma pessoa que trabalhava na minha casa e cuja profissão ou ocupação, era ser cozinheiro. Desculpe o preciosismo, mas o termo “criado” acarreta conotações que nunca entraram pelas portas da minha casa, isto é, da casa dos meus pais. Segundo, afirmar que a forma como dou a conhecer, no livro, a morte do camarada António “é muito superficial”, é uma convicção sua. Tenho para mim que realmente o que se passou nessa parte do livro foi que eu quis imprimir no livro a “brevidade” (diferente de superficialidade...) da notícia, tal qual me havia acontecido na vida real. A notícia foi-me dada com alguma simplicidade e rapidez, para não dizer brusquidão, e assim aconteceu-me escrever no livro. E sem comentários, sem floreios literários ou reflexões sobre o assunto. Aliás, como sabe, a única reflexão que há ali é emocional, sensorial: o rapaz vai à cozinha e “finge” que pode falar com o camarada António, dirige-lhe a palavra, e aguarda respostas que não chegam. E depois chove. Chove no seu quintal e no quintal do camarada António. Por fim, a minha relação com a morte... É algo estranho, sempre foi... Não tenho muito a dizer sobre isso. Não tenho nada contra a morte, tenho é imensa dificuldade em entender a saudade que nos fica da pessoa, e a sentença, cruel, de não voltar a poder falar com alguém. É isso que me dói na morte.

Ao longo do romance são enumeras as referências ao Camarada António, sobretudo na parte inicial do mesmo. A figura desta personagem remete-nos para o colonialismo português em Angola e a opinião das pessoas no pós-colonial.


• “ – Menino, no tempo do branco isto não era assim…” : camarada António in página 13
• “ –Ê!, menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa… tinha tudo, não faltava nada…”: in página 14, camarada António
• “ – Mas tinha sempre pão na loja (…)”: in página 14, camarada António
• “ – Ninguém era livre como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo…”: in página 15, Camarada António
De facto como se sabe o período de descolonização não veio apaziguar os povos Africanos, veio antes despoletar uma nova guerrilha de interesses internos, com vista à obtenção do poder. Daí, tais comentários tenham sido tecidos pelo camarada António. Para pior, mais valia continuar como estavam…
A propósito desta questão Ondjaki diz: O camarada António defende e descreve uma perspectiva pessoal da visão que tinha do tempo anterior à independência...
A Guerra

8) Outras das temáticas presente nesta obra é a Guerra. Como é que foi crescer no meio dela?
Eu costumo dizer que as crianças e as gentes de Luanda tinham a sorte de nunca ter vivido “demasiado perto” da Guerra. Luanda sempre foi o centro político protegido da realidade mais bélica da guerra. Crescemos, então, no meio da “psicologia da guerra”, das notícias da guerra, dos ecos de uma guerra que sabíamos que acontecia sobretudo mais a Sul. E foi isso. Éramos muito crianças, e o terror associado ao facto de “ir para a guerra”, acompanhava mais os adolescentes do que a nós, meras crianças. Quando chegou a nossa adolescência, a guerra tinha adquirido já um outro formato, bem como o modo de incorporar jovens. Mas, sim, há digamos uma presença dos ecos da guerra na minha infância e adolescência. De resto, nada de traumático. Felizmente.


Apercebemo-nos no romance o clima de medo que se vivia na infância do narrador, que de facto, vem ao encontro do que Ondjaki afirma na resposta anterior. De facto existia muito e usando palavras dele a “psicologia da guerra”.
• “ Guerra também aparecia sempre nas redacções (…)”In página 129
A esse propósito criavam-se muitos boatos, os ditos mujimbos que atormentavam muitas as crianças. Ideias fantasiosas que iam passando de criança para criança.
Mujimbos

Os exemplos seguintes ilustram bem essa mesma situação:
• “ – Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer… Mais de cinquenta…” In página 45 – Eunice
• “ – Eu não vi o camião, mas tenho colegas que viram.” In página 46-Eunice
• “ – Não deu para ver (…) vi bué de homens, média duns setenta…” In página 46
• “ – Sim, dizem que eles (…)”In página 46
• “ (…) tinha de ir telefonar a alguém a contar o mujimbo do Caixão Vazio.” In página 48
Em relação ao episódio do «Caixão Vazio» este remete-nos para a ideia que haveria um grupo de homens que andavam num camião e que vandalizavam escolas, violavam raparigas, matavam pessoas. É evidente que todos estes episódios faziam com que as crianças temessem pela sua segurança e estivessem sempre bem atentos, àquilo que as rodeava.
Os mujimbos, uma das características do povo africano, neste caso angolano é uma temática que realmente se encontra bem frisada neste romance.
Para além dos que já foram mencionados podem ainda destacar-se entre outros, os seguintes:



• “ – Eu nunca vi, tia, mas toda a gente sabe que ele tem lá o jacaré…,” In página 52
• “ (…) tanta porrada, mas tanta porrada, que no dia seguinte ele voltou lá à procura da orelha, tia! (…) o Cláudio mesmo é que lhe foi mostrar onde tava a orelha (…)”In página 57
• “ Não sei, há quem diga que nessa altura de queimaram os ladrões com pneus, os assaltos diminuíram, mas isso já não lhe posso confirmar.” In páginas 58,59
• “ Se ele tivesse visto um desafio de futebol e ninguém soubesse o resultado, de certeza que o Murtala ia aí uns sete golos, vinte e duas faltas, duas expulsões e lesões do próprio árbitro (…)”In página 80
• “ (…) cada um queria aumentar qualquer coisa na versão dele.” In página 89
• “ Vou jurar aqui pela alma do meu avô (…) pra não dizerem que aumentei já o acontecimento.” In página 111
• “ Havia até pessoas que sabiam mujimbos do Kuando Kubango, , das estórias que contavam (…) “In página 129
Os mujimbos criam de facto “suspense” no próprio romance. A confirmação da sua veracidade ou não. Se atentarmos nas falas das personagens constatamos que, estes são transmitidos de pessoa para pessoa, quase sempre de forma oral, muitas vezes sem confirmação: “– Eu nunca vi, tia, mas toda a gente sabe que ele tem lá o jacaré…,” In página 52. Se as pessoas diziam, à partida era porque era verdade.
Não obstante o que acontece muitas vezes é que as pessoas começam a aperceber-se do exagero aplicado a determinadas situações e começam a desconfiar da palavra do outro. De tal forma que começa a haver a necessidade de recorrer ao juramento como forma de atestar a veracidade da afirmação proferida:
“ (…) juro aqui com sangue de Cristo, pela alma do meu avô que tá debaixo da terra (…) “
A propósito deste juramento o escritor afirma: “era uma frase comum de ser dita, e acho que era para imprimir, muitas vezes, veracidade a um mujimbo; quando quem o contava, apesar de jurar, sabia perfeitamente que poderia não ser verdade...”


Os anos 80

Retomando a questão do período político que assombra todo este romance vários são os indícios destacados ao longo dele que o caracterizam:
• “Quando eu ia tirar o meu papel com as coisas que tinha escrito, a Paula explicou-me que não era necessário porque já tínhamos ali uma folha da redacção com os textos de cada um.” In página 36
• “Não, eles tinham um papel lá da Rádio, com carimbo e tudo, já tinha lá as mensagens de cada um. Eu li uma e eles leram as outras duas.” In página 37
• “Ao pé da porta de saída das pessoas havia uma pequena confusão, vi os FLAPAS a correr, pensei já que ia sair tiro”. In página 37
• “Não consegui mais ver o macaco, começou uma pequena confusão, o outro FLAPA chegou perto da senhora e tirou-lhe a máquinas das mãos.” In página 38
• “(…) em Luanda não se podia tirar fotografias assim à toa.” In página 38
• “Não podes tirar fotografias àquele macaco…, por razões de segurança de Estado (…)”In página 40
• “ – O cartão de abastecimento. Tu tens de ter um cartão de abastecimento, não é?” In página 47
• “ – Nem tem um camarada na peixaria que carimba os cartões quando levantas peixe à quarta-feira?”
Em relação aos cartões de abastecimento achava interessantíssimo mostrar um neste trabalho. Tentei verificar se Ondjaki teria algum, ao que me responde: “não os tenho... quem me dera encontrar um!”
• “ – Pois… Escapaste é ver a cerimónia de tiros que ia haver se algum FAPLA te visse a mexer (…)”In página 53
• “ – Não, tia, aqui não se pode. Esta praia tão verzul é dos soviéticos.”
• “ Presidente em África, tia, só anda já de Mercedes, e à prova de balas.” In página 56
• “ (…) ali em Luanda havia muitos bandidos, mas que era uma profissão perigosa.” In página 56
• “ Ela só nos disse para irmos fardados, pra não esquecermos o lenço da OPA e quem quisesse podia trazer cantil. A concentração era ali na escola às sete e meia, depois íamos a marchar para o Largo 1.º de Maio.”
• “ Estávamos todos direitinhos, em sentido, passaram revista aos lenços, quem não tinha lenço podia voltar pra casa, aquilo era o desfile do 1.º de Maio (…) não admitia crianças sem o fardamento completo. “
• “ (…) uma camarada do Ministério da Educação veio distribuir bandeirinhas vermelhas, amarelas, umas do país, outras do MPLA.” In página 81
• “ (…) as mamãs da OMA , os jovens da «jota» , os pios da OPA (…)”In página 81
• “ – O MPLA é o povo…”
• “ – E o POVO É O MPLA!” In página 82
• “ – Abaixo o Imperialismo…” In página 82
• “ DOS SANTOS… AMIGO… O POVO ESTÁ CONTIGO… DOS SANTOS… AMIGO… O POVO ESTÁ CONTIGO…,” In página 82
• “ DOS SANTOS… AMIGO… A OPA ESTÁ CONTIGO… DOS SANTOS… AMIGO… A OPA ESTÁ CONTIGO!” In página 83
• “ (…) afinal estavam a dizer que a guerra tinha acabado, que o camarada presidente ia se encontrar com o Savimbi, que já não íamos ter o monopartidarismo e até estavam a falar de eleições.” In página 133
É certo que Ondjaki, ao pertencer à primeira geração descolonizada, torna-se "pioneiro", como para o "pioneiro-protagonista" é o convite da jornalista Paula, para a celebração do 1º de Maio na Rádio Nacional, como se observa na pergunta feita pela mãe: "-Olha, a Paula vai fazer amanhã um programa sobre o 1º de Maio e queria recolher depoimentos dos pioneiros... Tu queres ir?". E também é pioneiro ao pertencer à classe média emergente que possui geleira, telefone e ar condicionado, ou "ar concionado".


Temos assim patentes ao longo da obra várias referências ao período de descolonização, e a forma como a organização política se encontrava. Concomitantemente são feitas referências a outras figuras históricas:
• “Ele também falou do camarada Che Guevara(…)”, narrador, pág. 17
• “ Era a Paula da Rádio Nacional, (…)” In página 24
• “(…) ou a UNITA tivesse partido uns postes” In página 26
• “Depois vinha o intervalo com a propaganda das FAPLA.” In página 26

9) O que era a FAPLA, e como é que uma criança luandense na década de 80 tem noção dos tipos de comportamento que devia ter na presença dos agentes da FAPLA?
Um FAPLA era um soldado das FAPLA – forças armadas para a libertação de Angola, era o nome do braço militar do MPLA, e depois ficou com o nome de exército nacional, até 1992, onde as forças armadas angolanas se passaram a designar FAA e a incorporar membros da UNITA. Sim, as crianças sabiam como falar ou agir na presença de um FAPLA.
• “(…) ANC , enfim, isso eram nomes que uma pessoa ia apanhando ao longo dos anos”. In página 26
• “(…) o meu pai nos explicou quem era o camarada Nelson Mandela, (…)”In página 26
• “(…) esse camarada Mandela já estava preso não sei quantos anos.” In página 26
• “ Era um filme do Trinitá , (…)”In página 44
• “ uma pintura do camarada José Martí na entrada. “In página 122.







Ainda relacionado com a questão da guerra ao ler-se o prefácio de Ondjaki no livro de Pedro Muiambo – A Enfermeira de Bata Negra , pode destacar-se o seguinte:
Referência à Guerra (contrastes entre Moçambique e Angola)

• “Nisso da guerra – e das crueldades da guerra – o teu país é primo-como-irmão do meu, e as estórias que relatas aparecem com cheiro de drama e veracidade, porque a guerra é real.”
• “Para mim é normal que ela apareça constantemente na boca das crianças, como Isayana conversa com o tio:
- Quantos mataste até agora?”
• “No livro como na vida, a infância dá lugar à guerra (…)”
• “É tempo de as crianças dos nossos países olharem a guerra como uma coisa já distante.”

Ainda sobre esse prefácio:

10) Através de uma análise atenta ao prefácio da sua autoria no livro de Pedro Muiambo – Enfermeira de Bata Negra, o Ondjaki a certa altura despede-se dizendo: “Pedro, eu vou indo. Sinto um rumor de novas histórias iluminado pela lua nova”. O quê que a noite tem, que o faça despertar para a escrita? que tipo de inspirações lhe dá?
É muito difícil de explicar, parece sempre que quando se tenta abordar o processo de criação caímos no campo, novamente, de uma especulação oca... A verdade é que, como dizia o outro, oxalá que a inspiração nos apanhe a trabalhar quando chegar. E isso, no fundo, é a disponibilidade interna, artística, intuitiva, coincidir com um “bom momento” de escrita...


Os cubanos

11) Outra das grandes questões da obra em análise é o facto de os cubanos terem ajudado na reconstrução do seu país, do seu povo. O Ondjaki analisa este processo como “uma questão de solidariedade”. Alguma vez teve o feedback de alguns dos seus professores cubanos que referiu no seu romance?
Não, infelizmente nunca os reencontrei, embora eu os procure há muitos anos. Já estive duas vezes em Cuba, agora (Fevereiro de 2010) acaba de sair uma edição cubana do BDC, e sempre os refiro quando dou entrevistas em Havana. Mas ainda não aconteceu. Tenho muito desejo que isso venha a acontecer, sobretudo porque escrevi o livro também para eles, e porque gostaria de os abraçar e contar algumas estórias, saber deles, etc. Estou convicto que isso há-de de acontecer.
No romance Bom Dia Camaradas, são enumeras as referências feita aos cubanos que na altura, do período de descolonização e das guerras subsequentes vieram auxiliar os africanos. Angola foi um dos países de excelência onde os cubanos se instalaram, o que de facto marcou a vida de muitos angolanos e daí as enumeras referências a este povo:
• “O camarada professor disse mira, yo trabajo desde hace muchos años y todavia no tengo uno, e nós ficámos muito admirados porque quase todos na turma tinham relógio.”: narrador, In página 17.
• “ A professora de Física também ficou muito admirada quando viu tantas máquinas de calcular na sala de aula”, narrador in página 18
• “E quem tinha os olhos mesmo bem acesos era o camarada professor Ángel, tipo nunca tinha visto tanta comida junta, dava gosto ver-lhe atacar o pão com compota.” In página 43
• “ A camarada professora María só faltava já babar, o que ela não fazia porque estava sempre de boca cheia a comer a compota de morango.”
• “ – Eu acho que eles são muito corajosos… Nunca ouvi nenhuma estória de cubano que estivesse a fugir de combate.” In página 75
• “ Os camaradas professores cubanos até nisso eram simpáticos porque quando apanhavam alguém a cabular só davam um aviso, não tiravam o ponto à pessoa.” In página 119
• “ Sentámos ali nos cadeirões com bué de buracos, começamos a olhar: tinham uma tv a preto e branco, a mesa só tinha três pernas e tinha ao lado uma cadeira igual à que havia na escola.” In página 122
• “ Eu não disse nada mas também achei que estava a cheirar a mofo.” In página 122
• “Ele me abraçou e limpou as lágrimas.” In página 125
Através das citações anteriormente destacadas apercebemo-nos de facto, da humildade dos cubanos, o facto de não terem uma vida economicamente viável, apesar de muitos serem professores. A estranheza que demonstram em ver objectos que muitos alunos possuíam, eles próprios, relógios, máquinas de calcular…
A satisfação quando são convidados para irem lanchar a casa de algum aluno e o excesso de comida que os faz “babar”…
Apesar de toda a humildade, de virem num socioeconómico baixo, não deixam de revelar um sentimento de patriotismo com os angolanos, não “fogem ao combate” e sobretudo são seres humanos de uma sensibilidade extrema. A forma emocionada como se despendem dos alunos revela isso mesmo.
“ (…) la educación es una batalla.” In página 110
“ (…) los niños son las flores de la Humanidad!” In página 111
12) Como é que vê a escravatura e tráfico de crianças, em países como o Gana, por exemplo?
Vejo como um problema muito grave. Assim como os maus tratos sexuais às crianças europeias e americanas; e à pedofilia também associado ao tráfico de crianças europeias e asiáticas...
“(…) caneta ser a arma do pioneiro.” In página 29
A última frase estava escrita nos cadernos do ensino primário: “a caneta é a arma do pioneiro!” (Ondjaki)


Não menos importantes são os «ensinamentos de vida» que os professores cubanos transmitiam aos seus alunos. A lutarem pelos seus ideais, pela sua educação, pelo seu sucesso escolar.
A amizade e a inveja

Outra questão que é analisada no romance está relacionada com a amizade versus inveja.
Seguem-se alguns exemplos que mostram bem essa dualidade:
• “Já a Petra todos os dias estudava, metia raiva, aquela miúda (…)” In página 23
• “Bem feita, que é pra não se armar em chica esperta e ver se fica um bocadinho menos agitadora.” In página 31
• Fui abrir a porta ao camarada António, e claro que lhe disse que tinha chaves e que não era preciso.” In página 33
• “A Petra só dizia com ar de gozo (…)”
• “ – Ró…” In página 66
• “ – Só não podemos cair, Ró, não podemos cair…” In página 69
• “ A Romina agarrou-me a mão com muita força, (…)”In página 69
• “ Eu e a Romina éramos amigos há muito tempo (…)” In página 73
• “ Para mim tinha sido bom, agora que tudo tinha passado, termos corrido juntos.” In página 74
Confrontado com esta dualidade de sentimentos que o narrador expressa principalmente com Petra e Romina, o autor do romance afirma que: “a Petra e a Romina foram um pouco “aumentadas” para imprimir um outro ritmo à estória. Eu não tinha inveja da Petra, o narrador é que tinha.”
Continuando na análise da rede de afectos do narrador, verifique-se que este nutria uma grande cumplicidade com a mãe (relações afectuosas, carinho), ao passo que o mesmo não acontece com o pai que por exemplo prefere «ouvir as notícias das 13 horas», ao invés de saber como correu a manhã de aulas das filhas.

Relação com a mãe:

• “(…) deu-me um beijinho, foi para a casa de banho (…)” In página 23
• “ Deu-me só um beijinho e disse-me para eu pensar naquilo do 1.º Maio para a rádio (…)”In página
• “ O sonho foi tão barulhento e cheio de confusões e tiros, que a minha mãe teve que me acordar quase de manhã a pedir-me para eu não dizer tantos disparates enquanto sonhava.” In página 48
• “ – Correu tudo bem, filho? – a minha mãe veio me dar um beijinho.” In página 61
Em relação à temática de afectividades, entre o pai e mãe, Ondjaki revela que “Por alguma razão nem o pai nem a mãe aparecem tanto na obra. Acho que literalmente eu tinha outras prioridades...”
A questão da oralidade

13) A questão da oralidade africana é algo que está bem patente neste romance, através da forma como explicita as ideias, dos vocábulos que utiliza, da construção frásica. Como é que vê a questão da oralidade, tão patente nos seus ancestrais? Acha que é fundamental na História de um povo, e daí quere-la transmitir nas suas obras?
Não, não quero transmitir a “oralidade africana” nos meus romances. Quero escrever romances que têm um estilo e um ritmo que a própria estória-ficção me dita. É só isso. Porque é muito fácil dizer que BDC ou o livro “Quantas madrugadas tem a noite” tem muita influência da oralidade africana, mas depois se formos falar do livro “O assobiador” ou mesmo o “Actu Sanguíneu”, onde é que fica essa oralidade? Penso que se trata de estilo e de necessidades, ou soluções, estéticas. Entenda que os vocábulos que utilizo e a construção frásica num livro como BDC, são uma “solução estética” para o livro em causa. Servem melhor ao livro e à estória que queria contar. Não servem um propósito maior de transmitir a oralidade africana...


Linguagem e estilo

14) Através da consulta da sua biografia constatei que desde cedo se dedicou à leitura de vários nomes da literatura, entre os quais Satre. Como comenta a afirmação do escritor: “ Ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, Mas por haver decidido dizê-las de determinado modo.” Considera que a introdução de determinados vocábulos de Kimbundu, por exemplo, nas suas obras as torna peculiares?
Não... O kimbundu é um “pequeno” recurso, aliás, natural, porque eu sou de Luanda e há grande influência da língua kimbundu na zona de Luanda. A única coisa que poderá tornar um livro peculiar, ou bom, ou interessante, é a sua “força literária”. Como isso se manifesta, é discutível, pode ser o ritmo, o conteúdo, a abordagem, o formato, etc. Mas se não tem alguma força, alguma “intensidade de conteúdo”, então você até o pode escrever em grego misturado com umbundu, não é por isso que chega ao mérito literário.
Ao lermos o romance apercebemo-nos da existência de inúmeras palavras, dito «calão» que abaixo se transcreve:
• “(…) yá (…): In página 16, narrador
• “ Ele estava a chorar e bazou para casa!!!”: In página 17, narrador
• “ é ir falar, né?” In página 25
• “(…) a Taag depois ainda melhorou uns coche (…)”In página 27
• “(…) ché!, eu ia zunir bué(…)In página 28
• “(…) haver uma borla todos os dias (…) In página”28
• “- Epá (…) e tinha bué de feridas…” In página 29
• “ (…) gamam mochilas, te chinam, violam miúdas (…)”In página 29
• “ (…) ché, só o poster!, tava a matar.” In página 34
• “ – Sim, ninguém gama essas tartarugas?” In página 35
• “O macaco lhe esticou uma lambisgóia do lábio que até saiu sangue.” 35
• “ (…) até fiquei burro, poça, (…) “ 35
• “ O macaco delirava, dava saltos mortais na cabeça da Kota, (…)”In página 38
• “ (…) avião acelera bué parece que vai se partir todo.” In página 41
• “ (…) o Murtala era muito fobado (…)”In página 43
• “ (…) o camarada presidente passa sempre a zunir (…)”In página 51
• “ (…) quando queres baldar (…) “In página 80
• “ (…) armou-se em parvo (…) palerma.” In página 81
• “ – Ouve lá, meu palerma…” In página 85
• “ (…) aqueles cabrões (…) “In página 85
• “ (…) começa só a desbobinar!” In página 101
• “ (…) também comiam bué de porrada (…)“In página 108
• “ (…) mamou vinte e quatro bifes (…)“In página 121
• “ – Seus burros!, temos que ir de noite!” In página 124
• “ (…) bué de ranho a cair do nariz?!” In página 125
Através da listagem destes vocábulos apercebemo-nos o quão ela é dominante neste romance. De certa forma, deixa de ser estranho, quando o narrador se assume criança, e, de facto este tipo de expressões, mesmo na sociedade portuguesa existe, no meio infantil. É evidente que a linguagem e estilo deste romance se caracterizam pela utilização do calão. Como podemos verificar pela entrevista o autor não pretende de forma directa transmitir a dita «oralidade», se bem que neste romance ela esteja patente, nomeadamente na utilização de frases incompletas, “- Eram mais de cinquenta, tou-vos a dizer…” In página 45.
A não preocupação da utilização de sinais gráficos (travessão) para iniciar o discurso, assim como as pausas no mesmo: “Mas, camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?, eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha.” In página 13
A forma como o pensamento e a linguagem se misturam, assim como o recurso a vocábulos em umbundu, como por exemplo: camba, campar, candengue…






A poesia de Ondjaki

15) tinha aprendido que era muito importante
criar desobjectos.
certa tarde, envolto em tristezas, quis recusar
o cinzento. não munido de nenhum
artefacto alegre, inventei um espanador de
tristezas.
era de difícil manejo – mas funcionava.
In: Materiais .., p. 7
Fernando Pessoa não consegue fruir instintivamente a vida por ser consciente e pela própria efemeridade. Muitas vezes, a felicidade parece existir na ordem inversa do pensamento e da consciência. Considera que o próprio Ondjaki traduz essa mesma tristeza nos seus poemas?
Há pouca tristeza, digamos assim, na poesia que tenho publicada. Publiquei três livros de poesia, e o primeiro só está disponível em Angola. Nesse primeiro, eventualmente, poderemos encontrar traços dessa “tristezura” que, sim, muitas vezes se passeia dentro de mim... Mas os outros dois livros, penso que não. Justamente gosto deles por se oporem a esse mundo interno um pouco menos alegre que tantas vezes me assola. É o meu lado de poeta, menos festivo e mais sério, talvez, que o meu lado de contador de estórias. Há muitos anos que deixei de entender o significado da palavra felicidade. Busco mais os meandros arejados da palavra “equilíbrio”...






A sua passagem por Portugal

16) Apesar de não valorizar vivamente o seu curso de sociologia, até que ponto alguém que tem uma base de formação num estudo de interacção de diferentes pessoas, em diferentes tipos de sociedades, lhe permite uma adaptação aos diferentes locais por onde vai passando?
Não sei... Acho que há sempre uma componente profissional e uma componente “pessoal” em tudo o que fazemos ou somos na vida. É-me difícil separar isso. Eu tenho graus relativos de adaptação aos locais por onde passo, e às vezes, dentro de mim, não seu bem aquilo que vou aparentando ser, não num sentido cínico de me dar às pessoas, mas porque, como todos os seres humanos, elevadas contradições entre sentires se operam dentro de mim, ao tomar contacto com diferentes pessoas ou lugares. Adapto-me, assim, a alguns lugares do que a outros. Por exemplo, nunca me adaptei a Nova Iorque, e fiquei lá apenas 6 meses, quando deveria ter ficado 3 ou 4 anos a fazer um mestrado. Inclusivamente saí de lá, abandonei o mestrado em virtude da minha “impossibilidade” de ali viver pacificamente... A vida é cheia de tendências...
17) Numa outra entrevista dada em 2007, Ondjaki afirmava que o facto de ter estudado em Portugal, mais concretamente, em Lisboa, lhe havia permitido e passo a citar “livrar-me de alguns mal entendidos históricos que carregava.” Que mal entendidos eram esses e o que o fez mudar de opinião?
Bom, crescendo em Luanda, nos primeiros anos após a independência, processavam-se, ao nível da escola, alguns equívocos relativos à ideia dos “colonialistas”. Com isto não quero dizer que não se passavam também as ideias correctas (do ponto de vista histórico) de todo esse complexo processo. Mas havia, na minha cabeça, sobretudo enquanto criança, uma ideia, digamos assim, um pouco equivocada do que eram “os portugueses”. E estar e estudar em Portugal, permitiu-me, obviamente, conhecer alguns portugueses de perto, inserido no seu dia a dia, na sua cultura. Isso libertou-me de alguns preconceitos que eu levava quanto aos portugueses. E confirmou outras certezas, sem dúvida. Também essa vivência em Portugal me permitiu conhecer e contactar com gentes de outros países africanos e do Brasil, o que me despertou para um novo olhar sobre esses povos e sobre o seu modo de usarem e falarem a tal de Língua Portuguesa.

18) Há previsões quando virá a Portugal?
Não.
Ligação ao mundo das Artes

19) A sua mãe era professora. De certo modo por episódios familiares que conheço, ter um pai ou uma mãe professores marcam a nossa infância. Há sempre aquela preocupação, acompanhamento individual. Terá sido que o levou para o mundo da escrita?
Sim, a minha mãe era professora. Isso teve muita influência, acho eu, na minha relação com a língua portuguesa, e com o acto de ler, talvez. Com a escrita, não sei dizer. Não acho que exista um modo de se saber como é que alguém chega à escrita (de livros), embora muitos escritores estejam convencidos que sim, que sabem como foi... A minha mãe e também o meu pai, sempre tiveram um zelo muito grande com a nossa educação, com a escola, os deveres de casa, estudávamos durante as férias grandes, etc. A escola, a academia, sempre foi uma prioridade demasiado séria em toda a minha família. A escrita chega porque tinha de chegar. Assim como um dia poderá ir-se embora.
20) Quem foi a primeira pessoa a ter contacto com aquilo que escrevia?
Não me lembro... Não sei bem... Porque “aquilo que escrevia” teve vários formatos. Primeiro foi a poesia em cadernos meus, depois escrevi um jornal na escola, ainda em Luanda, mas isso eu considerava uma espécie de ficção humorística para fazer os jovens colegas chegarem à leitura. Não gostavam de ler os meus colegas de escola, e se fosse algo cómico, satírico, aceitavam ler. Fiquei fascinado com o poder dessa ficção que “fazia ler” até os que não gostavam. Vi que se tratava de uma questão, afinal, de conteúdo. De estilo também, mas sobretudo de conteúdo. Depois comecei com os contos, e aí deve ter sido algum familiar, alguns amigos...
21) Se eu lhe pedisse uma frase para cada um, que caracterizasse a literatura de Luandino Vieira, Mia Couto e José Eduardo Agualusa. Quais seriam essas 3 frases?
Não saberia dizer... São três importantes escritores de Angola e Moçambique, com trabalhos e contextos distintos entre si. Mas preciso dizer que Luandino Vieira e, por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho, são dois autores que estão à altura de receber um Nobel. Bem, é isso que eu sinto como leitor universal, não como cidadão angolano.
22) Considera que o facto de ter crescido, numa cidade multicultural como Luanda poderá ter contribuído para acentuar o seu lado criativo na Vida?
Sim, não sei se há uma relação directa, mas Luanda tem um ritmo de vida, de quotidiano, que certamente influencia quem lá vive. Há quem se deixe contagiar menos ou mais, há quem seja mais ou menos exuberante nessa vivência, mas ela é poderosa no seu ritmo e pressão.
23) Para além da sua relação com a escrita destaca-se a sua ligação à pintura, teatro e cinema. Como é que nasce esta sua ligação a todas estas formas de arte?
Foram épocas de experimentação, além de que, sinceramente, mesmo me considerando um perfeito amador, gosto muito de teatro. Gostaria muito de voltar a actuar, um dia destes... Mas, de resto, são coisas que faço para me experimentar, para me conhecer, e depois voltar à escrita. Com o tempo vamos limando as nossas ferramentas... E as minhas usam ser as da escrita.
24) Como foi iniciar este romance? Quantas vezes teve de modificar o 1.º parágrafo? O que custou mais, o iniciar ou o finalizar do mesmo?
Não, o primeiro parágrafo não alterei muito, acho eu... Foi natural começar o romance, porque estava com pressa de o entregar, tinha um prazo, digamos assim, acordado com o editor angolano... O que mais me custou foi fazer a “travessia emocional” pelas memórias que tive de invocar para chegar ao livro como um todo. Fiquei surpreendido com o poder sensorial dessas invocações... E acaba por ser um trabalho muito terapêutico, por razões óbvias.
25) Que misto de sensações o rodearam ao ter na mão o seu romance publicado, Bom Dia Camaradas, sendo este o 1º?
Foi interessante... Na altura senti que tinha feito uma longa caminhada para chegar ali. O que não era verdade. E como era uma estória tão autobiográfica, eu olhava para aquilo mais como um caderno de memórias do que como um livro de ficção. Só anos depois me fui apercebendo de que havia feito, de facto, um interessante exercício de transposição das memórias para a ficção. Mas não posso falar muito disto, porque fica mal estar a elaborar sobre o meu livro...
O Autor pelo mundo

26) Aquilo que temos vindo a assistir nos últimos tempos é que os grandes nomes da literatura africana se têm vindo a separar fisicamente do seu continente de origem e a estacionarem por outros locais no mundo, que não África. Sente que tal fenómeno, se deve ao facto de o Governo Africano ainda não ter criado as condições ideias para o desenvolvimento dos diferentes tipos de Arte e não reconhecer o potencial dos seus «filhos»?
Não. Estou convencido que, na maioria dos casos, tem a ver com circunstâncias do foro pessoal, e não profissional. Sabemos de casos que estão relacionados com as opções políticas dos escritores, e esses são casos específicos. Agora, África é um continente, e eu não sei do que se passa em todo o continente, nem estava ciente, antes de você me dizer, que os grandes nomes da literatura africana se separaram do continente de origem... Realmente não sabia. Assim como também desconhecia que havia um “Governo Africano”, ou, querendo ser mais condescendente com a sua terminologia, não sabia que os governos africanos (no plural) se comportavam como uma entidade uníssona que “não cria as condições ideais para o desenvolvimento dos diferentes tipos de Arte”. Na minha modesta opinião, o continente africano que conta com 54 países, apresenta uma diversidade étnica, cultural, política e ideológica tão intensa, que não me fica claro como será possível falar, ou pensar, num “Governo Africano”... Mesmo enquanto ideia abstracta, a designação certamente abusaria da generosidade do termo “ideia abstracta”...
27) Mia Couto tem um livro intitulado Cada homem é uma raça. Apesar de as suas raízes se fixarem bastante no continente Africano, mais especificamente, Angola (Luanda), como é que vê o seu deambular pelo Mundo? Entende o fenómeno da globalização como a aproximação de raças e culturas, permitindo dar a conhecer ao Mundo as suas raízes?
Bom, são sempre opções pessoais... E a viagem é um cruzamento de circunstâncias entre aquilo que a vida nos permite, e aquilo que decidimos que queremos fazer dela. Pessoalmente, sempre gostei de viajar e isso sempre me ajudou a ver e a compreender melhor as outras culturas. É esse o grande ganho, sim.

28) Os seus livros encontram-se já traduzidos em diversas línguas, francês, inglês, alemão, italiano, … Como é que um escritor ainda tão jovem, 33 anos, vê todo este reconhecimento espalhado pelo mundo?
Sinceramente, penso que esse escritor de 32 anos (ainda não fiz 33) tem que se concentrar em escrever melhor o seu próximo livro. E crescer: lendo, comparando, viajando, concentrando-se na seriedade da sua escrita. O que é a seriedade? É a honestidade literária. O saber cortar quando tiver que cortar. O saber estar calado quando nos fazem perguntas às quais não sabemos responder. Saber optar pelos momentos certos, pessoais e literários, sem ceder à vaidade. E é sabido que a vaidade nos chega e nos “ataca” por mecanismos secretos. Há que estar atento. E seguir a viagem com alguma tranquilidade. É isso que digo a esse escritor quando o encontro ao espelho. Se ele acredita, não sei...
29) Em relação ao acordo ortográfico. Não considera que a sua prática põe em causa a singularidade da literatura numa cultura, seja ela, qual for?
Só penso que não entendi bem quais foram as razões que levaram as pessoas a fazer e assinar este acordo, neste preciso momento. E por outro lado, quanto às consequências, só saberemos daqui a 50 ou 100 anos, porque agora estamos ocupados, ainda, em viver o processo. Portanto, desculpe, não sei quase nada sobre esse tal de acordo ortográfico....
30) Estamos em 2010, pode-nos adiantar em primeira ou segunda mão, como quiser, que tipo de género literário se encontra a escrever ou tem em mente?
Estou a terminar a revisão de um novo romance, o que normalmente leva algum tempo. E a terminar estórias infantis... E também a rever um antigo livro de poemas... E também a rever um novo livro de contos...
31) O quê que no seu ponto de vista faz com que um leitor que não saiba quem é o autor do romance, neste caso o Ondjaki o identifique pela forma como escreve?
Não saberia responder... E espero que o leitor se interesse pela obra, pela estória a ser contada, e não pelo autor. Não preciso que me identifiquem como autor, mas gostaria que considerassem o que conto uma “boa estória”. Apenas isso.


32) Quais as diferenças para si entre estória, história e História? Nós cá em Portugal não usamos a palavra estória!
Aprendi na 4ª classe que História, com “h” maiúsculo, era o que de facto se havia passado, sobretudo relacionado com factos e personalidades históricas. Nomes e personagens. Etc. História, com “h” minúsculo, é uma simples estorieta, um facto normal, comum, que de facto aconteceu, mas que não envolve personagens ou situações históricas. Um almoço, um “causo” de rua. E “estória” é algo mais subjectivo ou relativo, que depende de quem conta, e certamente deve conter algo de ficcional...

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